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psi1.gif (3050 bytes) globe4.gif (9321 bytes)Nline.gif (2767 bytes)barrabr.gif (6829 bytes)Psychiatry On-line Brazil - Current Issues (3) 10 1998

 

Psicanálise em Debate:

É com grande satisfação que abrimos esta coluna. Seguindo a sugestão de nosso editor, Giovanni Torello, mensalmente aqui estaremos utilizando o referencial psicanalítico para a compreensão de fatos clínicos e culturais. Esperamos manter um diálogo aberto com os leitores, através do nosso e-mail, pelo qual poderão mandar comentários, sugestões, etc.

 

"CARÁTER" – Seria Joba uma das tais famosas "mães esquizofrenogênicas"?

Sérgio Telles*

* Psicanalista e Escritor. Formou-se em Medicina em Fortaleza em 1970, ano em que veio para São Paulo. Fez sua formação analítica no Instituto Sedes Sapientiae, no Curso de Psicopatologia e Psicoterapia Psicanalíticas (atualmente "Formação em Psicanálise"), onde foi professor e supervisor de 1980 a 1992. Tem colaborado em vários jornais e revistas e é autor de um livro MERGULHADOR DE ACAPULCO (Imago Editora).

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# O filme holandês CARÁTER, que comentamos abaixo, mostra uma série de personagens cujos comportamentos enigmáticos tentamos compreender com uma leitura psicanalítica. Como constituem uma família muito peculiar, deu-nos oportunidade para lembrar uma linha de pesquisa psiquiátrica que foi muito importante até meados dos anos 70 e que agora enfrenta um certo ostracismo - a importância da família na gênese da doença mental, especialmente da psicose.

# Em 29 de setembro de 1908 morria Machado de Assis. Sua pequena obra-prima O ALIENISTA aborda um tema que nos é muito próximo.

"CARÁTER" – Seria Joba uma das tais famosas "mães esquizofrenogênicas"?

Sérgio Telles

Entre os concorrentes ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 1997 estavam o brasileiro "QUE É ISSO, COMPANHEIRO?" e o holandês "CARÁTER", que entrou agora no circuito comercial.

Infelizmente para nós, por maior que seja o ufanismo nacionalista, não há como negar que "CARÁTER" mereceu de longe o prêmio. Desde a direção primorosa de Mike van Diem, a fotografia excepcional, os grandes atores, a história forte - baseada no romance de 1938 de F. Borderwijk – roteirizada de forma brilhante, tudo faz com que "CARÁTER" seja um filme indispensável para quem gosta de cinema.

Suas cenas iniciais mostram o jóvem Katadreuffe entrando num edifício onde, aos gritos, diz para o velho Drevenhaven ter recebido o diploma de advogado e não mais precisar dele. Em rápido crescendo, instala-se uma briga entre os dois homens. Vemos Katadreuffe sair ensanguentado do prédio. Em seguida são mostrados sua prisão por suspeita de assassinato de Drevenhaven e subsequente interrogatório.

Em flash-back tomamos conhecimento de sua história. Sua mãe, Joba, era empregada doméstica de Dravenhaven, que a engravidou numa única relação sexual um tanto brutal, à qual ela se submete passivamente. Katadreuffe é, pois, filho bastardo de Dravenhaven. Ao saber da gravidez, Joba - uma mulher taciturna e silenciosa - avisa a Dravenhaven que vai partir. Quando a criança nasce, Dravenhaven resolve assumir a paternidade e propõe-lhe casamento, propostas que são recusadas. Por mais de um ano, Dravenhaven manda-lhe dinheiro mensalmente, renovando sua proposta de casamento, sendo sistematicamente rejeitado.

Com o correr dos anos, por várias vezes Dravenhaven repete sua proposta de casamento, sem sucesso. Katadreuffe segue, por sua vez, uma solitária e infeliz infância. É atacado nas ruas como bastardo e em casa recebe um tratamento frio e distante da mãe. O isolamento o leva aos livros, dando alimento a uma inteligência brilhante que o levará posteriormente a altos postos.

Ainda menino pergunta à mãe sobre o pai e a resposta que obtém de Joba é: "nós não precisamos dele" . Mesmo assim, Katadreuffe termina por descobrir a identidade do pai. Numa determinada ocasião, para se safar de uma dificuldade, se apresenta como filho de Dravenhaven. Este aparece e, revelando uma grande ambivalência, faz um gesto que inicialmente parece ser um reconhecimento do filho, para logo renegá-lo. A partir daí, Katadreuffe assume o bordão da mãe, o "nós não precisamos dele".

Já adulto, precisa de capital para estabelecer um pequeno negócio e inadvertidamente pede dinheiro emprestado a um banco que é do pai. Com grandes dificuldades consegue livrar-se da dívida. Inexplicavelmente pede um novo empréstimo, o que dá margem a novas pendências legais entre os dois. Em função destes problemas, termina por ingressar num escritório de advocacia, onde encontra um bondoso tutor que o ajuda desinteressadamente. As disputas legais geram um crescente ódio e medo em Katadreuffe, que se sente perseguido e prejudicado por Dravenhaven. É o conflito entre os dois que polariza o ritmo da trama que o roteiro leva a tão bom e surpreendente termo.

A história mostra alguns enigmas que somente uma leitura psicanalítica poderia esclarecer. O maior deles é o comportamento da mãe de Katadreuffe. Não se entende porque Joba, esta miserável e silenciosa mulher recusa de forma tão sistemática a aproximação do homem que a engravidou e que quer honrar sua posição com o casamento, assumindo a paternidade de seu filho.

Uma opinião mais superficial poderia afirmar que a forma como foi abordada sexualmente, um quase estupro, justificaria seu comportamento. Essa explicação não se sustenta quando lembramos a passiva receptividade com que responde a abordagem sexual de Dravenhaven, assim como sua atitude posterior, não procurando proteção externa, permanecendo na casa dele. Ali continuou até constatar sua gravidez, quando comunica a Dravenhaven que vai embora, sem nada pedir.

Uma possível interpretação da atitude de Joba a vincularia a uma má elaboração de seu complexo de castração. Como sabemos, é em função deste complexo que se instalam as saídas do complexo de Édipo. No momento de sua vigência, as diferenças anatômicas entre os sexos são explicadas pela ausência ou presença de um único órgão, o falo. A ausência do falo é vivida como castração, uma insuportável perda que representa e reatualiza todas as perdas anteriores e mais primitivas, entre elas a da relação fusional com a mãe. Uma das formas de resolver este impasse, na mulher, é justamentte através da equação simbólica bebê-pênis. Engravidar, ter um filho, é finalmente ter o desejado falo, com o qual então sente-se completa, inteira, plena, não mais castrada. Sente-se onipontente. Tendo o filho, identificado com o falo, o pênis, a mulher agora não precisa de mais ninguém, de mais nada. Daí o bordão de Joba, o "nós não precisamos dele". Ela só precisou de Dravenhaven para engravidá-la.

Como sabemos, estas satisfações regressivas são extremamente prejudiciais, dificultando o contato com a realidade, que passa a ser ignorada em nome de primitivos e irrealísticos desejos inconscientes. Assim, Joba ao realizar sua fantasia infantil fálica, automaticamente fica impedida de viver de forma adulta, casar-se e ter uma família constituída. Rejeita Dravenhaven, homem rico, que poderia satisfazê-la sexualmente e tirá-la da miséria financeira. Tem com o filho uma relação narcísica, ou seja, o vê como parte de si mesmo. Não consegue vê-lo como um ser humano com subjetividade própria, com necessidades próprias. Não consegue ver – o que é central neste caso - que o filho, Katadreuffe, possa ter necessidade de um pai. Ela apenas pensa, "agora eu tenho um filho-pênis, estou protegida contra toda e qualquer perda, meu narcisismo está completo, de nada mais preciso".

Por outro lado, em sua disputa fálica com o homem, ao rejeitar sistematicamente o poderoso Dravenhaven, Joba triunfa sobre ele, castrando-o ao desprezar sua potência sexual e financeira.

Por esses motivos não admite a entrada do Dravenhaven, o pai. Sua presença anularia sua vitória sobre ele, assim como - mais importante ainda - seria uma ameaça direta à relação narcísica que mantem com o filho. Joba, em seu silêncio, seu distanciamento, seu alheiamento, parece caracterizar um comportamento melancólico, narcisista, inteiramente voltado para si mesma, incapaz de dar atenção ao filho, impossibilitada de ver o amor – sui generis, sem dúvida - que Dravenhaven tem por ela e pelo filho.

Desta forma, entendemos que o conflito entre pai e filho, que parece ser o mais importante na trama, na verdade é secundário, decorrente deste outro conflito muito mais central e determinante, o conflito entre a mãe e o pai. Vemos também aí, de forma clara, como o acesso do filho ao pai (e deste ao filho) ficam inteiramente dependentes do desejo da mãe.

Dravenhaven, por sua vez, também tem características muito especiais. É figura formidável, poderoso e impiedoso agente da lei. Como oficial de justiça lhe compete executar o despejo de inquilinos inadimplentes, famílias miseráveis que são jogadas ao relento, uma tarefa que executa num misto de indiferença e violenta selvageria. Além disso é homem rico, dono de banco.

Odiado e temido por todos, esconde atrás de sua temeridade –em função da qual se coloca em situações de alto risco pessoal - uma forte tendência autodestrutiva, suicida. Sua afetividade está coartada, bloqueada, escondida atrás das insígnias e dos brasões da lei que ostenta ininterruptamente. Homem rico e poderoso, não pôde estabelecer um vinculo amoroso adequado e termina por escolher de forma canhestra sua empregada doméstica.. Como representante da lei, age coerentemente ao não se eximir de suas obrigações: oferece o casamento e a assunção da paternidade, mas o faz de forma rígida e formal, sem conseguir expressar suas emoções, seus afetos. As recusas e rejeições de Joba o deixam destroçado.

Joba, Dravenhaven e Katadreuffe constituem – de forma alegórica – uma família "disfuncional", como se diz nos Estados Unidos. Nela vemos o efeito catastrófico da patologia dos pais (neurose narcísica, melancolia) sobre a própria constituição do casal e sobre o filho. Katadreuffe identificado com a mãe, obedece sua interdição contra a aproximação do pai. Deseja intensamente este pai mas não se autoriza a assumí-lo. A destrutiva relação entre seus pais terá sido decisiva em sua inabilidade para se aproximar da mulher que o ama, preso que está a seu narcisismo, a seu projeto ambicioso e megalomaniaco.

Como já dissemos, a patologia central desta família parece ser a melancolia. Isso se evidencia quando vemos que a dívida assume um papel importantíssimo na vida de todos os personagens, regendo os atos de todos eles.

A dívida, a possibilidade de saldá-la ou não, é uma das formas como se articula, a nível consciente, a culpa inconsciente, como Freud tão bem mostrou no famoso caso do "Homem dos Ratos". Abraham afirma que os mecanismos obcessivos são defesas contra a depressão e a melancolia.

Assim, o vínculo formal que une esta infeliz família é a dívida. Se tomamos o conflito mais evidente, entre pai e filho, logo vemos que é uma dívida que estrutura esta relação. Não havendo o contrato simbólico da paternidade, fica este substituído pelo contrato legal da assunção da dívida financeira. Assim se explica porque Katadreuffe volta a pedir um segundo empréstimo, sendo este objetivamente ainda mais inaceitável por colocá-lo literalmente nas mãos de Dravenhaven. Age assim porque é o que inconscientemente deseja. O pai dá e cobra, o filho aceita e se acha perseguido, sem notar as formas sutis com que o pai o favorece, já que não poderia fazê-lo de outra forma. O filho está na posição de devedor, quando na verdade ele é o credor, é ele quem cobra a dívida do paternidade

A dívida também determina a relação entre Joba e Dravenhaven, desde que ela o impede de reparar seu erro, de liquidar com sua dívida símbolica, casando e assumindo a paternidade.

Mas é Dravenhaven quem expressa de forma mais contundente a problemática da dívida. Como agente da lei, tem como principal tarefa legal cobrar as dívidas dos inadimplentes, quando os despeja de suas casas, destruindo materialmente lares e familias. A implacável forma como executa sua tarefa parece ser uma tentativa de projetar sua culpa (sua dívida) naqueles miseráveis, com os quais passa então a agir como um super-ego sádico. Esse mecanismo não parece ser muito eficaz para controlar sua culpa, pois vemos como não o impede de várias vezes procurar a morte de forma mais ou menos aberta.

Essa tentativa de entender a dinâmica familiar em "CARÁTER" nos leva à conclusão de que as patologias dos pais destroem o casamento e se refletem danosamente sobre o filho, causando-lhe patologias. Isso abre importantes questões, entre elas o do papel da familia na psicogênese da patologia mental.

Hoje em dia, em que a psiquiatria está tão voltada para as pesquisas químicas dos neurotransmissores cerebrais, é interessante lembrarmos que bem recentemente, até meados dos anos 70, havia uma grande linha de pesquisas sobre a influência da família na gênese das doenças mentais, especialmente das psicoses.

Nos Estados Unidos, a partir da década de 40, Harry Stack Sullivan insistia na importância das primeiras relações do bebê com seus pais como fatores determinantes em sua posterior patologia, especialmente a esquizofrenia. Estabeleceu-se uma grande curiosidade em torno da "mães esquizofrenogênicas", expressão cunhada em 1948 por Frieda Fromm-Reichman. Em linhas gerais, a "mãe esquizofrenogênica" se caracterizaria por uma atitude ambivalente com a qual simultaneamente superprotegeria e rejeitaria seu filho.

Muitos estudos foram feitos na década de 50 sobre esse tema, como mostra a abrangente revisão feita por Gordon Parker no artigo RE-SEARCHING THE SCHIZOPHRENOGENIC MOTHER, (The Journal of Nervous and Mental Disease - vol. 170 - 8 - 1982). Estes trabalhos se revelaram muito esclarecedores, mas foram questionados em função de sua pobre metodologia, da ausência de grupos de controle, de uma estatística deficitária, um problema, a meu ver, próprio da pesquisa psiquiátrica quando se afasta de sua vertente mais orgânica

Trabalhos subsequentes deslocaram o eixo da patologia, que estava centrado na mãe, para o relacionamento patológico do casal parental e depois o estudo dos padrões de comunicação dos pais e da família dos esquizofrênicos. Neste campo, os trabalhos de Bateson, Haley, Weakland e Laing , com a teoria do "duplo vínculo", marcaram época

É compreensível a posição de John Neill, em seu artigo WHATEVER BECAME OF THE SCHIZOPHRENOGENIC MOTHER? (American Journal of Psychotherapy, vol. XLIV, 4, Oct. 1990), quando ataca o conceito de "mãe esquizofrenogênica", considerando-o equivocado e extremamente danoso por culpabilizar as mães, demonizando-as.

Esse é um problema muito sério. Em primeiro lugar, se as mães são "esquizofrenogênicas" – ou seja, se determinadas mães estabelecem relações especialmente patógenas com seus filhos, posteriormente causadoras de psicoses ou outras perturbações - elas não devem ser demonizadas e sim tratadas, entendidas em suas patologias. Em segundo lugar, o enfoque familiar da doença mental implica numa grande mudança na prática psiquiátrica. Na medida em que os recursos terapeuticos se descentram do "paciente" e se voltam para a família, é de se esperar que isto gere efeitos e o mais imediato deles é o aparecimento de culpa e ansiedade em pessoas que até então não se viam como "pacientes". Isso causaria problemas logísticos incontornáveis, desde que a demanda pelos serviços psiquiátricos aumentaria de forma dramática.

Apesar de praticamente abandonado o obsoleto, parece-me que trabalhos mais recentes dão ao conceito de "mãe esquizofrenogênica" uma formalização teórico-clínica mais acurada e pertinente

Refiro-me os trabalhos de Stoller com as mães de transexuais (A EXPERIÊNCIA TRANSEXUAL - Imago Editora), e as elaborações teóricas de Piera Aulagnier sobre a gênese da psicose (OBSERVACIONES SOBRE LA ESTRUCTURA PSICÓTICA - PSICOANALISIS DE LA PSICOSIS - CARPETA DE PSICOANALISIS 1 - LetraViva). É interessante sublinhar que, apesar de partirem de corpos teóricos muito distantes - um psicanalista americano, outra lacaniana - as conclusões às quais chegam têm grande semelhança. Para estes autores, a relação patógena fica caracterizada uma ligação narcísica da mãe com o filho, que não é rompida pela intervenção do pai enquanto terceiro representante da lei. A psicose (ou travestismo) é decorrência da não castração da mãe através da equação bebê (filho)-pênis.

Foi este o modelo que seguimos para entender os enígmas do filme "CARÁTER". Joba poderia ser vista como um exemplo de "mãe esquizofrenogênica", (aqui entendida como aquela que produz uma relação patógena com o filho não necessariamente esquizofrênico) muito embora, como ali fica também esclarecido, não existe apenas a problemática da mãe e sim toda uma complexa e complementar relação com o pai de seu filho.

Essa linha de pesquisa sobre o funcionamento familiar, que esteve em grande voga nos anos 70, teve continuidade com o trabalho dos terapeutas de família, que usam hoje basicamente dois referenciais teóricos mais importantes, o psicanalítico e o sistêmico.

Ainda hoje, lembro do grande impacto que senti ao ler SANITY, MADNESS AND FAMILY, de Laing e Esterson. São transcrições de fitas gravadas com entrevistas de esquizofrêncos e suas familias. É uma leitura que recomendo aos mais entusiamados com a "decada do cérebro".

 

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Você já leu O ALIENISTA?

Se você teve, como eu, a sorte de chegar à idade madura sem ter lido na adolescência, como dever escolar, O ALIENÍGENA, de Machado de Assis (L&PM Pocket - R$ 3,50), não se prive mais deste prazer.

O sábio alienista Simão Bacamarte se estabelece em Itaguaí e logo procura colocar em prática seus conhecimentos sobre a loucura e a saúde mental. Mas, consternado, constata não saber bem como agir. Afinal, os "loucos" são os que têm um "perfeito equilíbrio das faculdades mentais"? E os "normais" os que tem um "perfeito desequilíbrio das faculdades mentais"? O evoluir do pensamento de tão importante sumidade provoca tumultos e escândalos na população de Itaguaí.

Em torno deste alienista, como éramos chamados antes que a psiquiatria se constituisse como tal, Machado de Assis exerce sua fina ironia criticando a pretensão cientificista, as modas da ciência e seus abusos inevitáveis. Mais ainda. Machado é implacável ao mostrar o microcosmo de Itaguaí com suas alianças, traições, ambições, lutas pelo poder, mesquinharias, hipocrisias, oportunismos. São evidências da loucura humana, não a loucura asilar, mas a do dia-a-dia, a que é inerente ao bicho-homem.

Essa nota é uma homenagem aos 90 anos da morte de Machado de Assis, ocorrida em 29 de setembro de 1908. Gago e epilético, nascido na pobreza, filho de uma lavadeira portuguesa com um mulato carioca, Machado de Assis tinha tudo para não dar certo. Contrariando todas as probabilidades tornou-se nossa maior glória literária.


# ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE – No ano de 2000, em Paris, acontecerá uma grande reunião congregando psicanalistas independentes ou pertencentes às diversas instituições, dispostos a discutir a grande crise teórico-institucional pela qual passa a psicanálise hoje. Será uma oportunidade para refletirmos o que temos feito do legado freudiano. Ninguém melhor para explicar os objetivos e razões deste importante evento do que um de seus mentores, o psicanalista francês René Major. Publicamos abaixo dois de seus textos convocatórios. O convite está aberto para todos interessados. Maiores informações poderão ser obtidas com Maria Cristina Magalhães, telefone/fax (011) 256-3236 e 257-8694. Ou através do e-mail: crismagalhaes@uol.com.br

# GRADIVA está de volta – Todos aqueles que, nos anos 80, gostavam da forma independente e crítica com a qual o jornal GRADIVA, orgão da SPAG do Rio de Janeiro, abordava a cena psicanalitica deve felicitar-se, pois ele está de volta, numa versão on-line. Seu endereço é: http://www.gradiva.com.br

Aliás, ali se encontrará mais informações sobre os ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE, como uma entrevista de René Major para a revista francesa "Oedipe".

Entre outras interessantes matérias estão uma entrevista com Joel Birman e artigos de Elizabeth Roudinesco.

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CONVOCAÇÃO PARA OS ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE

René Major, Paris

 

 

Se o século XX foi uma época de angústia e de destruição que o tempo progressivamente nos mostrou, foi também a idade de liberação de numerosos preconceitos que contaram com a contribuição da psicanálise, não somente por sua prática, como também pela influência exercida por seu pensamento, em diferentes campos da cultura. A psicanálise abriu novas avenidas às artes e às ciências, a literatura e a crítica literária, a filosofia, a história, a sociologia, como Freud havia previsto.

Entretanto, apesar de sua força e vitalidade nitidamente afirmada em cem anos de experiência, é próprio da natureza da psicanálise - e da ação do inconsciente - suscitar constantes resistências. Nada escapa. As instituições psicanalíticas que foram criadas para preservar a herança freudiana e promover a pesquisa analítica, geraram com freqüência formas de rigidez, contrárias aos objetivos que pretendiam.

A instituição é conclamada a ser conservadora, enquanto que a conduta psicanalítica, ao contrário, é convocada a ser libertadora, e mesmo, subversiva. O equilíbrio entre estas tendências opostas e as inevitáveis tensões que elas provocam, estão longe de estarem atualmente preservadas . O poder que se desenvolve no seio das instituições, repousa comumente na falta de resolução de transferências, na submissão dominante e a seu código lingüístico, que servem muito mais para preservar os controles sociais e burocráticos, do que para abrir novas fronteiras à pesquisa e à extensão de nossos conhecimentos. A ação das organizações para corrigir estes desequilíbrios, quando se manifesta, demonstra-se, freqüentemente, à serviço da instituição.

Às vésperas do século XXI , faz-se sentir a necessidade urgente de uma discussão aberta sobre o estado atual da psicanálise, que seja conduzida pela maioria de psicanalistas suficientemente livres das influências e pressões das organizações, ou preocupados, dentro delas, com o necessário questionamento de sua política.

A importante reunião realizada em fevereiro último, em Paris, para examinar o que aconteceu no Rio de Janeiro durante os anos de repressão militar e sua repercussão internacional - sendo este caso exemplar de um sintoma da história e do movimento psicanalítico - levou-me a propor a convocação dos Estados Gerais da Psicanálise, com o objetivo de abrir um espaço que não excluísse o questionamento das modalidades de formação, de ensino, de transmissão e de organização institucional da psicanálise.

Esta convocação dirige-se a todos os psicanalistas, qualquer que seja sua filiação institucional ou qualquer que seja o motivo de recusarem filiação, e a todos aqueles que, por um ou outro motivo, queiram se empenhar nessa reflexão.

Estes Estados Gerais da Psicanálise se realizarão no ano 2000, em Paris, em data e lugar que ainda não estão determinados. Se nos concedemos três anos para realizá-los, é para dar tempo que se formem, em diferentes países, grupos que possam se reunir, trabalhar e produzir o resultado de suas pesquisas. O que não exclui as proposições individuais, nem as que possam advir das instituições existentes.

O programa das Jornadas será feito em função das proposições que serão recebidas pelos responsáveis da organização nos diferentes países. A lista destes responsáveis será comunicada em próxima correspondência.

Deverá ser formado um Comitê de preparação que, tal qual esta convocação, só existirá para traduzir o cuidado e a preocupação que acreditamos ser grandemente compartilhadas e que já se manifestaram.

A administração destes Estados Gerais e a importância destes acontecimentos não terão sentido, sem a condição de que não pertençam a nenhuma instância particular, individual ou coletiva, e que não possam ser reinvidicadas por nenhum grupo já legitimamente ou legalmente constituído. Os Estados Gerais devem poder debater, eles mesmos, sobre sua própria legitimidade. Esta é uma regra indispensável. Os compromissos práticos efetivos, que possam emanar destes Estados Gerais, não poderão afirmar-se, senão na medida em que sejam livres ou independentes das organizações existentes e daquelas que tomam hoje a iniciativa e a responsabilidade de realizá-lo. O que não significa que não seja desejável que estas organizações não deixem de reconhecer a fundamentação desta convocação. Pelo contrário. Mas o b que comanda a urgência de uma transformação da situação da psicanálise neste fim do século, ultrapassa as fronteiras de qualquer instituição e de qualquer iniciativa pessoal.

Proximamente, será constituída uma associação "para os Estados Gerais da Psicanálise" , a fim de receber os apoios financeiros necessários, sendo ela dissolvida no dia seguinte da Assembléia.

Todos aqueles que desejam, podem, desde já assinar esta convocação e difundi-la. Todos os signatários serão associados a esta iniciativa, que se tornará deles.

Esperando a formação do comitê da preparação, a correspondência e as assinaturas podem ser enviadas ao iniciador desta convocação:

ETATS GÉNÉRAUX DE LA PSYCHANALYSE

c / o René Major

23 , quai de Bourbon

75004 Paris

França

FAX : 0331- 4-3 26 91 97

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 AS BASES PARA OS ESTADOS GERAIS

 

RENÉ MAJOR,

A convocação para a realização dos Estados Gerais da Psicanálise, data de 17 de junho. Não é uma data ao acaso. 17 de junho é uma data que marca uma virada na longa história dos estados gerais.

Do séc. XIV ao séc.XVIII, a realização dos Estados Gerais confunde-se com os períodos de crises. Na França: a guerra dos Cem Anos, a Fronde (partido que atacou Luís XIV no começo de seu reinado), a Revolução. No início e durante quatro séculos, eles se realizaram por convocação do rei e satisfaziam aos deveres de conselho que os vassalos deviam a seu soberano. Entretanto, ao longo dos séculos, as convocações passaram a ser substituídas por eleições que passaram a dar representação de três ordens: o clero, a nobreza e o terceiro-estado. De simples conselho, os deputados passam às revindicações. A representação igualitária das ordens dará lugar a uma maioria do terceiro-estado, correspondendo melhor à realidade , no seio da qual se encontravam os trabalhadores. A sociedade hierarquizada segundo a "dignidade", será substituída pela república dos talentos. Em 17 de junho de 1789, o terceiro-estado proclama-se Assembléia nacional. Em 9 de julho, a Assembléia declara-se constituinte e, um mês mais tarde, afirma a superioridade de seu poder constituinte com relação à vontade real. Daí por diante, nada será igual como antes.

Pode-se compreender as razões desta analogia para o convite feito a todos os psicanalistas, no sentido de debaterem os problemas cruciais para o futuro da psicanálise, após a experiência de algumas gerações. Se desejamos, juntamente com os signatários da convocação de 17 de junho de 1997, que os Estados Gerais da Psicanálise demarquem um fato importante, é também pensando que a ausência de referência às hierarquias, garantias e legitimidades em vigor, é o que dá aos participantes a oportunidade de inaugurar algo diferente dos colóquios, congressos ou jornadas que conhecemos. Não que estes eventos não tenham lugar em nossa reflexão e em nossas trocas. Nem, muito menos, que as sociedades de psicanálise ou grupos de psicanalistas, tal qual existem, não tenham razão de ser com suas competências, sua legitimidade e eficácia. Mas, tornou-se indispensável nos dias de hoje, que a autonomia destas instituições possa confrontar-se com a heteronomia e defrontar-se com o que lhes é menos familiar como modo de formação, de trabalho clínico e teórico, de iniciação à pesquisa e de reconhecimento.

Tornou-se evidente que uma condição indispensável para que os Estados Gerais sejam importantes e inaugurem alguma coisa, que eles não possam ser apropriados por nenhuma instância individual ou coletiva e que possam debater entre si suas legitimidades. Esta é uma posição, todos concordarão, que pertence muito "naturalmente" ao dispositivo psicanalítico, a liberdade de associação, e a transferência, que , por si-mesma, não poder ser apropriada. Repito com insistência: não se trata de Estados Gerais daquele que é seu iniciador, este nada mais faz que representar uma aspiração; nem são estados gerais do comitê de preparação em via de se constituir; nem de todos aqueles responsáveis em cada país. São os Estados Gerais de todos os signatários da convocação. Desde então, as numerosas assinaturas testemunham que estes Estados Gerais respondem a um desejo amplamente compartilhado e que este desejo não segue as linhas de divisões tradicionais. Estarão presentes psicanalistas de todas as tendências e pertencentes a diferentes instituições. O comitê de preparação está atento ao conjunto de preocupações, inquietações e expectativas de todos.

Para que o debate psicanalítico possa estar à altura do interesse que ele suscita, é também preciso que fique o mais afastado que possa de recriminações vãs ou de puros protestos. É preciso que o debate seja exigente quanto aos trabalhos que determinam a prática da psicanálise e o funcionamento das instituições que se mostram responsáveis, mas que funcionam diferentemente, garantindo que não garantem nada.

Estes Estados Gerais não desejam, de forma nenhuma, ser uma tribuna aberta aos simples protestos contra tal ou qual prática, contra tal ou qual instituição, mas um lugar onde possam ser apresentadas proposições novas concernentes à prática e à instituição que interessam especialmente às que já existem. Não podemos ignorar que existe uma forma de degradação da prática psicanalítica que coloca questionamentos sobre as formas de avaliação, de seleção, de reconhecimento dos psicanalistas, bem como as formas de sua marginalização; que existem associações de psicanálise que se alicerçam na manutenção de uma transferência que tende a assegurar a manutenção do grupo - até sua implosão; que existem condições sócio-econômico-políticas de exercício da psicanálise que a deixam em liberdade relativa com relação a uma ideologia dominante, que a ligam de alguma forma a um sistema de classes, que a submetem ao controle do Estado; que alguns entre nós não levam em consideração senão a realidade psíquica e que outros tendem a articular esta realidade interna à realidade externa, isto é, às condições nas quais ela se desenvolve e ao contexto em que se insere; que alguns consideram que não há nenhum lugar para uma ética dentro da psicanálise ou para uma ética da psicanálise, a lógica interna de seu discurso lhe basta, enquanto que outros estimam que há na psicanálise uma ética específica do desejo e que é urgente que esta inscreva em sua prática e suas instituições o discurso ético-político que lhe pertence; que alguns sustentam que a psicanálise é apolítica enquanto que outros pensam que tal posição a expõe a todo tipo de manipulações pela política e que o pensamento psicanalítico é simultaneamente sócio-ético-político; que alguns consideram que o pensamento freudiano está ultrapassado devendo ser substituido por sucessores, enquanto que outros consideram que o retorno a Freud é sempre atual.

Nenhuma destas questões deixará de ser examinada nos Estados Gerais. Por outro lado, qualquer tomada de posição deverá ser rigorosamente argumentada e discutida.

Se, como alguns imaginam, estes Estados Gerais poderiam vir a abrir uma nova organização internacional, isto não ocorrerá senão através do desejo e da vontade do conjunto de participantes, através de uma assembléia constituinte, e com proposições viáveis para o futuro. Não é o objetivo primeiro destes Estados Gerais. O único objetivo que eles sustentam até o momento é a possibilidade de um grande debate, aberto e construtivo.

Sabemos, desde já, que os Estados Gerais se realizarão no grande anfiteatro da Sorbonne em Paris e que deverão acontecer no mês de maio, durando uma semana. Já são numerosos os psicanalistas brasileiros que assinaram a convocação. Numerosos serão também, assim o espero, seus trabalhos e suas contribuições. 

Pelos Estados Gerais,

René Major

Tradução de Helena Vianna

 

 

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mail14.gif (2967 bytes) Denise Razzouk e Giovanni Torello

Data da última modificação:23/08/00

http://www.priory.com/psych/carater.htm