Part of The International Journal of Psychiatry - ISSN 1359 7620 - A trade mark of Priory Lodge Education Ltd

psi1.gif (3050 bytes)   globe4.gif (9321 bytes)Nline.gif (2767 bytes)barrabr.gif (6829 bytes)

Psychiatry On-line Brazil (3) 11 1998

 

FALANDO DE CIDADANIA

 

# # # Nossa coluna deste mês faz referência a dois acontecimentos que estão vinculados pelo tema da cidadania. Refiro-me, em primeiro lugar, às eleições que mobilizaram todo o país. A esse respeito tecemos algumas considerações sobre a espantosa propaganda eleitoral obrigatória que fomos obrigados a aturar. O outro assunto é nosso 16º Congresso de Psiquiatria. Fazemos um pequeno comentário geral e apresentamos uma entrevista com um dos participantes do mesmo, Luís Barros - presidente do Projeto Fênix e fundador do grupo de auto-ajuda Psicóticos Anônimos.

Sérgio Telles*

* Psicanalista e Escritor. Formou-se em Medicina em Fortaleza em 1970, ano em que veio para São Paulo. Fez sua formação analítica no Instituto Sedes Sapientiae, no Curso de Psicopatologia e Psicoterapia Psicanalíticas (atualmente "Formação em Psicanálise"), onde foi professor e supervisor de 1980 a 1992. Tem colaborado em vários jornais e revistas e é autor de um livro MERGULHADOR DE ACAPULCO (Imago Editora).

 

PROPAGANDA POLÍTICA, PUBLICIDADE, MANIPULAÇÃO DE NOTÍCIAS, HORÓSCOPOS, CARTOMANTES, PREVISÕES ECONÔMICAS E DO FIM DO MUNDO, ETC - Uma reflexão sobre as crenças e crendices

 

Octave Mannoni em seu interessante artigo "Eu sei, mas mesmo assim..." (in CHAVES PARA O IMAGINÁRIO - Editora Vozes - 1973) aborda o tema das crenças. Tenta explicar como alguém acredita ou não em algo, como se sustenta uma crença, como a crença se relaciona com a fé.

Usando o referencial teórico de Lacan, de quem foi um dos primeiros e mais sérios discípulos, Mannoni remete o problema das crenças ao mecanismo de Verleugnung, a recusa, fenômeno que Freud descreve pela primeira vez ao falar de fetichismo.

Como sabemos, a Verleugnung, a recusa, é a forma como o fetichista responde à percepção da diferença anatômica sexual, a ausência do falo na mãe.

A ausência do falo na mãe é uma percepção fundamental que tem efeitos estruturais muito amplos na constituição do sujeito. A partir da intensa angústia de castração que ela desencadeia, o menino se encaminha para a resolução do Complexo de Edipo, pois, preocupado narcísicamente em preservar seu pênis, é forçado a abdicar de seus objetos amorosos incestuosos. Já a menina, ao contrário, ingressa no complexo de Édipo, desde que ao se ver privada de órgão tão valioso, amargamente responsabiliza sua mãe pelo fato e, desgosa com ela, volta-se para o pai, na esperança de receber dele um pênis que a completaria ou em função do qual estabelece a equação simbólica bebê-pênis. Como resultante desse processo, que citamos aqui em largas pinceladas, se organizam o super-ego e as identificações sexuais.

O fetichista tenta evitar as consequências desta percepção da ausência do falo na mãe. Ele consegue ver que não existe o falo materno e - ao mesmo tempo - manter a crença em sua existência. Consegue esta façanha através deste mecanismo específico da Verleugnung, a recusa da realidade, que provoca uma cisão no ego, dividindo-o em dois lados, um deles respeita a realidade, ou seja a inexistência do falo materno, e outro continua acreditanto no falo materno. Tenta assim contornar as dores inevitáveis próprias ao proceso edipiano. Constitui o fetiche, objeto que em sua fantasia representa aquele falo inexistente.

O fetichista crê na existência do falo e simultaneamente descrê no mesmo. Ele acredita e não acredita. Mannoni vincula a estrutura das crenças as mais variadas que nos acometem à Verleugnung, a rejeição. O que equivale a dizer que se a Verleugnung é patognomônica do fetichismo, ela – apresentando-se de maneira menos radical e patológica - está presente de forma muito mais abrangente e disseminada em todos as outras estruturas psíquicas.

Diz Mannoni: "(...) é preciso que a crença sobreviva ao desmentido, embora ela se torne inapreensível, e que se veja dela apenas os efeitos completamente paradoxais. Este exemplo abriria todos os tipos de caminho: a utilização de falsas notícias com objetivos de propaganda, mesmo quando devem ser desmentidas, as promessas que não podem ser cumpridas, a psicologia da mistificação e dos impostores".

"Eu sei, mas mesmo assim..." - que é como Mannoni sintetiza esta posição de manter uma crença mesmo depois de ter um conhecimento que a invalidaria, atitude própria da Verleugnung - pode ser detectata em muitos acontecimentos de nossa psicopatologia da vida cotidiana ligada às crendices, tipo horoscopo, cartomante, previsões do fim do mundo, loterias, tarôs, duendes, etc.

"Não acredito em cartomantes, mas mesmo assim..."- toda vez que agimos assim, no fundo estamos reatulizando de forma disfarçada a atitude do fetichista, o "não acredito no falo da mãe, mas acredito". Estaria aí o especial prazer que se pode usufruir de determinadas crenças, pois o que está em jogo não é propriamente o teor da crença e sim a estrutura do poder acreditar e não acreditar, o ver a realidade da castração e o recusá-la.

A publicidade joga com nossos desejos narcísicos, sexuais e agressivos. Procura alimentá-los, propondo novas identidades que realizem tais desejos, que estariam acessíveis através de objetos de consumo idealizados. Vemos então que além disso ela conta com outra poderosa aliada que é a Verleugnung, a recusa da realidade. Ninguém acredita inteiramente na publicidade, mas mesmo assim... realizo meu desejo de negar a castração, mantenho a existência do falo materno.

É como se o "normal" (entenda-se neurótico) se vingasse da rigidez da realidade à qual foi forçado a ingressar, mantendo um pouco a possibilidade que o fetichista tem de driblá-la.

Se isso é usado e abusado na propaganda comercial, com a propaganda política, isso atingiu um nível imoral e antiético. E foi justamente vendo a recente propaganda eleitoral na TV que o artigo de Mannoni me veio à mente.

Temos no Brasil um código de defesa do consumidor que impede a veiculação de propaganda enganosa. É muito curioso que tal princípio não vigore quando está em jogo uma coisa muito mais séria que os simples objetos de consumo, que é a gestão da coisa pública, a escolha de nossos representantes no poder.

As peças de propaganda beiram o mais descabelado surrealismo e irrealismo. Essa situação atingiu ponto culminante com a obra de Duda Mendonça que tentou mostrar o candidato Maluf como a personificação do Bem, e Covas como o Mal, o que "baixa o nível"... Pela autoria de tais portentos teria, segundo a própria mídia, ganho 70 milhões de reais.

Talvez os mais informados tenham se divertido com o ridículo de tal postulação. Talvez tiveram oportunidade de brincar com sua angústia de castração, segundo o modelo "Não acredito que o Maluf seja a encarnação do Bem, mas mesmo assim..."

Mas a coisa muda de figura quando lembramos que a propaganda está dirigida para as classes menos favorecidas, os pobres e miseráveis, já que a faixa mais informada da população não escolhe seus candidatos pela propaganda eleitoral. Quando lembramos isso, fica caracterizada não o uso da Verleugnung - recusa - na propaganda e sim a mais deslavada das mistificações, a manipulação da informação, a prevalência da desinformação para fins políticos.

Outra coisa que me faz lembrar as teorizações de Mannoni sobre as crenças é ler nos jornais as mais variadas previsões sobre o futuro de nosso pobre país. Como diz Joelmir Betting, a oferta é variada. Vai desde aquilo que ele chama de "jornalistas chapa-branca", que são os bajuladores do poder, que a tudo dizem amém, e os "jornalistas sinistrose" - aqueles que estão apregoando sem cessar o fim do mundo, que aliás aconteceu ontem...

Claro que, no caso, as crenças variam de acordo com as posições políticas, mas será que também aí estaria presente o "eu sei, mas mesmo assim..."? As crenças políticas responderiam ao mesmo problema?

Questão complicada e difícil de responder. Mannoni estabelece uma diferenciação entre fé e crença (crendice). Embora sempre estejam misturadas, ambas feitas da palavra de outrem, estariam em níveis diferentes - uma no simbólico, a outra no imaginário.

nufrac8.gif (4690 bytes)

 

O tema do 16º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que ocorreu entre 28 e 31 de outubro em São Paulo, foi Cidadania e Direito à Saúde Mental. Trata-se de um tema com fortes conotações políticas e sua pertinência ficou ainda mais aguçada por coincidir a realização do Congresso com este momento no qual toda a sociedade brasileira esteve mobilizada para o exercício mais direto da cidadania - a realização das eleições para a Presidência da República, para os Governadores dos Estados, para os representantes das Assembléias Legislativas Estaduais e Federais, bem como para o Senado.

É um momento que convida à reflexão. Temos de constatar como imensas parcelas de nosso povo ainda continuam alijadas e alienadas de seus mais comezinhos direitos de cidadão, presas que estão na miséria e na ignorância. É isso que explica a permanência de um sistema político onde prevalece a falta de ética e o descaso pelo interêsse público. Se essa constatação nos deixa um tanto melancólicos, não podemos esquecer - por outro lado – que, nos últimos anos e apesar de tudo, temos consolidado a democracia e feito substanciais progressos na moralidade pública.

No nosso 16º Congresso, o tema da Cidadania foi diretamente abordada no Simpósio do Presidente, que abriu os trabalhos, assim como na mesas Psiquiatria e Cidadania; Psicoterapia e Instituições: Ampliando o direito da saúde mental; Psicanálise, Liberdade e Cidadania. De forma indireta, foi abordada em muitas outras que discutiam aspectos dos serviços de saúde mental, da reforma da assistência psiquiátrica, da saúde mental e migração, da política e medicamentos, dos planos de saúde.

Quanto à psicanálise ela se fez presente diretamente na conferência Psiquiatria e Psicanálise: Interfaces, de Luiz Tenório de O. Lima; na mesa redonda Psicoterapia e Psicanálise na Clinica Psiquiátrica; na conferência Escrever a clínica, de Renato Mezan; no painel Esquizofrenia na perspectiva psicanalítica, biológica, social e cultural, e na mesa redonda Psicanálise, liberdade e cidadania. O painel Pesquisa em Psicanálise abordou um assunto extremamente atual, que diz respeito à cientificidade da psicanálise. Ali os debatedores procuraram estabelecer a especificidade do campo analítico, que é diferente do da psiquiatria e das ciências naturais, o que traz problemas também muito específicos quanto à possibilidade de pesquisas. Indiretamente, a psicanálise estava incluída nas várias mesas que abordaram temas ligados às psicoterapias.

 

Quando pensamos na coluna deste mês, tínhamos planejado – aproveitando o contato pessoal promovido pelo 16º Congresso – entrevistar algum dos muitos renomados colegas que ali estavam, que seguramente muito nos teriam a dizer sobre os importantes problemas que se colocam hoje para a psicanálise, especialmente aqueles decorrentes do que se convencionou chamar de a década do cérebro, onde as descobertas das neurociências parecem obscurecer um pouco a importância da subjetividade, da vertente psicoterápica que é inerente à psiquiatria e que não pode ser menosprezada.

Estando no Congresso, por um acaso, conheci Luiz Barros, fundador do grupo de auto-ajuda Psicóticos Anônimos e presidente do Projeto Fênix. Esse encontro me fez mudar de idéia. Ao invés de entrevistar um colega de renome, que seguramente pode expressar suas opiniões onde bem quiser, tendo muitos canais para fazê-lo, resolvi dar a palavra a um representante daqueles que ali eram minoria, os portadores de doença mental. Na verdade, Luiz Barros estava corajosamente ali sendo talvez seu único representante declarado. Quero assim dar minha colaboração ao espírito de valorização da cidadania que vigorava no Congresso.

 

Administrador de empresas pela Fundação Getúlio Vargas, doutorando em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo, autor de três livros publicados pela Imago Editora, do Rio de Janeiro (Memórias do Delírio – Confissões de um Esquizofrênico, Anjo Carteiro – A correspondência da Psicose e Vinte e seis Pérolas e outras fantasias), Luiz Barros - que tem 45 anos e dois filhos - é ainda colaborador do Jornal da tarde e de Mirandum, revista eletrônica na área de Humanidades da USP.

Luiz teve seu primeiro surto aos 24 anos. Tem 21 anos de experiência psiquiátrica, do outro lado do balcão – como costuma dizer. Teve diversos diagnósticos, entre eles o de "esquizofrênico" como aparece no título de seu livro. Ultimamente as hipóteses apontariam mais para a linha das doenças bipolares.

 

Psychiatry on Line (PoL) – Luiz, fale-nos do Psicóticos Anônimos (PA).

Luiz (L) – É um grupo de auto-ajuda para portadores de doenças mentais. Não pretendemos ser substitutos dos tratamentos médicos e psicológicos e sim complementá-los. Incentivamos a troca de experiências entre portadores, pondo em prática a filosofia de recuperação usada com sucesso em outros grupos do Brasil e do exterior.

PoL – Como assim?

L - Nossa filosofia de recuperação baseia-se no programa de Seis Passos, desenvolvido pelos Schizophrenics Anonimous americanos. A prática destes passos proporciona uma melhor qualidade de vida. Discutimos os ‘sinais de racaída’, aprendendo a evitar as crises ou a conviver melhor com aquelas que são inevitáveis.

PoL– Como funcionam os grupos?

L – Os grupos são totalmente auto-geridos por seus membros, coordenados pelos próprios portadores de doenças mentais. E também nossa associação, o Projeto Fênix, é totalmente dirigida por nós. Nisso somos diferentes de muitas outras associações, inclusive do exterior. Muitas são tuteladas diretamente pelos profissionais da saúde ou pelos familiares dos portadores. É uma diferença muito importante. A forma como nos organizamos nos permite recuperar nossa própria voz. Recentemente estive em Paris e Hamburgo, participando de reuniões que tentavam congregar várias destas associações de defesa de direitos, como a canadense World Schizophrenia Fellowship (WSF) que congrega gente de 28 países, a European Federation of Associations for the Mentally Ill (EUFAMI), a ZANCARA do Japão. Estas associações são constituídas por portadores, familiares e profissionais da saúde. Em nenhuma delas existe propriamente auto-gestão dos portadores, desde que – como já disse - são tuteladas pelos profissionais ou pelas famílias, normalmente pelas mães. É um verdadeiro matriarcado, que impede a autonomia dos filhos.

PoL – No Projeto Fênix e no PA vocês contam com ajuda de outras pessoas?

L – Claro. Estamos modificando um pouco a constituição formal da associação, que passará a ter uma diretoria executiva formada exclusivametne por portadores e familiares, um conselho de administração, onde além dos portadores podem participar familiares e profissionais da saúde, na proporção máxima de 1/3 para os últimos e um conselho científico-social, composto exclusivamente pelos profissionais. No momento, recebemos apoio e retaguarda técnica de profissionais da saúde ligados a várias instituições, como o Instituto de Psiquiatria da USP, da Universidade Federal de Minas Gerais, da PUC-SP, docentes da Faculdade de Educação da USP, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Unicamp.

PoL – Quando foram instalados estes grupos?

L – Fundamos os Psicóticos Anônimos (PA) em 1996, em São Paulo. Contamos hoje com sete grupos em pleno funcionamento, por onde passaram mais de 500 pessoas desde então. Temos grupos em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

PoL – Você é o presidente do Projeto Fênix – Associação Pró-Saude Mental. Qual é a relação entre PA e Projeto Fênix?

L – Como no início o PA não recebeu nenhum apoio institucional, foi necessário criar uma pessoa jurídica. Daí o Projeto Fênix. Atualmente contamos com o apoio institucional da igreja e agora, no começo de novembro, teremos a abertura do primeiro grupo a funcionar dentro do espaço institucional da Faculdade de Saúde Pública da USP. Temos ainda o Amigos e Parentes dos Psicóticos Anônimos (AP-PA), um grupo, como o nome o diz, para aqueles com quem o portador convive.

PoL – No painel "Psicoterapia e Instituições: Ampliando o Direito da Saúde Mental", do 16º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, você fez várias colocações que me pareceram muito pertinentes. Poderia se estender um pouco sobre isso?

L – Falava sobre os planos de saúde e seguros-saúde, cuja regulamentação - após longa estagnação – está para sair. Saberemos se os portadores de doença mental continuarão a ser mais discriminados do que os aidéticos o foram no sistema de saúde como um todo.

PoL – Como assim?

L – Sendo totalmente falha a cobertura às doenças mentais oferecida pelos planos e sendo maior ainda a farsa oferecida pelo setor público, a conclusão que chegamos é que a rigor não existe assistência aos portadores de doenças mentais no país. Embora a cobertura de doença mental possa ser enunciada, os planos costumam cobrir apenas a consulta médica. E o tratamento psicológico, para não mencionar o inexistente atendimento social, como fica? Há planos que oferecem apenas uma sessão de psicoterapia ao mês para pessoa portadora de graves distúrbios. Como os planos não cobrem as medicações necessárias, na prática não cobrem quase nada.

PoL – Estamos falando dos custos da doença para o portador.

L – Claro. Veja, um portador de esquizofrenia fora da crise, sem menção a internações, pode manter-se com uma consulta médica mensal ou bimestral, da ordem de R$ 100 a 150, a valores do mercado. Salvo tenha superado os problemas psicológicos decorrentes de sua condição, necessitaria atendimento psicológico semanal, igualmente da ordem de R$ 100 a sessão. O custo de sua medicação e eventuais exames laboratoriais pode chegar a cerca de R$ 350 ao mês com o uso de medicação de última geração, indispensável para certas pessoas. A depender da medicação, os custos chegam até R$ 800 ao mês. Assim, de um total que varia entre R$ 750 a R$ 1300, os planos, ao cobrirem apenas as consultas médicas e psicológicas de forma restrita desembolsam bem menos de R$ 80, dado os valores irrisórios com que remuneram os profissionais conveniados. (Nota - A nova regulamentação para planos de saúde saiu no dia 3 de novembro. No ítem da saúde mental foi definido: Consultas psiquiátricas sem restrição e 12 sessões anuais de psicoterapia em tratamento ambulatorial; cobertura das primeiras três semanas anuais em hospital psiquiátrico).

PoL – E temos também os custos sociais da doença.

L – As pessoas falam da relação custo-benefício do tratamento. Muito embora se saiba que o custo social da doença mental tratada é menor do que a não tratada (as pessoas voltam a ser produtivas; a falta de tratamento ambulatorial adequado leva ao aumento de internações, cujo custo é mais alto, etc), para mim estas discussões não tem muito sentido. Quem quer que se meta a calcular o custo-benefício de uma doença, há de se deparar com a necessidade de calcular qual é o custo de uma vida humana.

PoL – Vejo que, no correr de nossa conversa, você usa preferencialmente a palavra portador. Não é uma mera questão semântica.

L – É verdade. Quando digo que sou portador de uma doença, digo que posso vir a ficar doente, digo que estou doente, não que sou um doente. É a diferença entre ser e estar. Também não gosto de usuário, palavra utilizada na rede de atendimento ambulatorial e hospitalar brasileira. A razão alegada para tal uso é o combate ao preconceito ante a doença mental, assim como o reconhecimento da inadequação da palavra paciente. Mas é uma escolha infeliz. É uma palavra cheia de significados ambivalentes, que traem a perversão limitativa da liberdade. Diz o Aurélio que usuário tem acepções cujo sentido não se referem àquele que faz uso e sim àquele que se usa. Uma das acepções até mesmo reporta-se diretamente ao conceito de apropriação e servidão: dizia-se do escravo de quem se tinha o uso, mas não a propriedade.

PoL – Esse cuidado com a linguagem, esse conhecimento dos valores semânticos e suas inferências políticas e culturais nos levam para suas atividades como autor. Fale-nos de seus livros.

L – Meu primeiro livro, o Memórias, já está na terceira edição. Como o título diz, é um depoimento de cunho memorialistico, onde falo de minhas experiências como portador de uma doença mental.

PoL – Aproveitando a deixa, qual foi sua experiência psicoterápica? Você já fez psicanálise? Está atualmente em terapia?

L – Já fiz psicoterapia bioenergética, existencial, grupal, Gestalt e ultimamente faço análise junguiana, com a qual me sinto muito bem. Não tive boas experiências com a psicanálise. Tentei algumas vezes sem sucesso. Achei seu enquadamento muito frio e distante. Não gostei de seu enfoque de voltar ao passado, pois muitas vezes já estamos assoberbados com o lixo do presente, sem condições de lidar com o lixo do passado. Acho também que a psicanálise tem uma visão pessimista e cruel do homem, especialmente do psicótico. Acho que Freud foi muito cruel na análise que fez de Schreber. Acho que não se pode analisar uma pessoa somente através de sua obra. Você veja, eu mesmo, quando meu livro Memórias foi publicado, um psiquiatra escreveu um artigo numa revista especializada, contestando meu diagnóstico de "esquizofrenia", no que talvez estivesse correto, mas afirmava com toda a convicção que eu seria um "epilético", coisa que nunca fui...

PoL – Talvez você tenha razão, mas não lhe parece que quando um autor, qualquer que seja, publica algo, ele está se expondo publicamente e, consequentemente, deve contar com as leituras, as críticas e opiniões as mais diversas?

L – É verdade. Aquele psiquiatra que escreveu sobre meu livro também está exposto a críticas e opiniões diversas...

PoL – Voltemos a seus outros livros.

L - O segundo, Anjo Carteiro, enfeixa a correspondência que recebi após o lançamento do primeiro. Embora neles tenha todo um cuidado estilistico, um trabalho com a linguagem, minhas pretensões literárias propriamente ditas se centram no terceiro, o Vinte e Seis Pérolas.

PoL – Você está fazendo o doutorado na Filosofia da Educação da USP. Qual é o tema de seu trabalho? Tem algo a ver com seus livros?

L – Tem sim. Meus dois primeiros livros serviram de base para meu trabalho de Mestrado em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo, com o tema O VALOR DA ESCRITA NA RECUPERAÇÃO DA PSICOSE. Já para o doutorado, escolhi como tema meu trabalho com o Projeto Fênix e os Psicóticos Anônimos. A tese se chamará REEDUCAÇÃO: A ALQUIMIA DOS GRUPOS ANÔNIMOS DE AUTOAJUDA.

PoL – Luiz, para concluir, caso alguém esteja interessado em maiores informações, como poderia obtê-las?

L – Quaisquer pessoas interessadas em abrir novos grupos estão convidadas a entrar em contato conosco. Novos grupos podem ser abertos, com nosso apoio, tanto por iniciativa de profissionais de saúde quanto de familiares, portadores, religiosos, líderes comunitários. Podem ligar em São Paulo, para o telefone (011)5606-2947; em Belo Horizonte para o número (031)221-3055 e no Rio de Janeiro para o (021)469-5581. O e-mail é fenix@fenix.org.br

 

 

barrabr.gif (6829 bytes)

Denise Razzouk e Giovanni Torello

Data da última modificação:23/08/00

http://www.priory.com/psych/links.htm