Problemas Atuais na
Abordagem Terapêutica das Farmacodependências
Dartiu Xavier da Silveira*
*Coordenador do PROAD (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes) Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM
Nas últimas décadas, o tratamento das dependências de substâncias psicoativas tem sido tema de debate constante tanto no meio científico como a nível da comunidade em geral. Diversos modelos de abordagem do problema vem sendo discutidos, ocasionando uma verdadeira Torre de Babel, onde prevalecem mais polêmicas do que posições consensuais.
Distintas abordagens tem sido denominadas tratamento de dependências: manutenção de uma situação de abstinência (como no caso de alguns grupos de auto-ajuda); substituição de uma dependência ilícita por outra similar, porém sob controle do médico (como, por exemplo, os tratamentos de substituição pela metadona); controle medicamentoso da sintomatologia associada às dependências (modelo psiquiátrico tradicional); adequação de indivíduos que apresentam comportamentos desviantes à uma norma estatisticamente definida (grande parte dos modelos comportamentais); restruturação de uma personalidade que apresenta distúrbios no seu desenvolvimento(modelos psicoterápicos).
O primeiro grande desafio ao lidarmos com
farmacodependências começa na própria caracterização do fenômeno. A especificidade
da farmacodependência consiste na inexistência de uma especificidade estrutural do
dependente de fármacos. Por mais que a nosografia psiquiátrica insista em categorizá-la
como uma entidade nosológica autônoma, a clínica da farmacodependência não consegue
reconhecer nada mais sistematizável do que uma conduta toxicomaníaca_. Assim, em
princípio, não podemos falar em "doença", mas apenas em "conduta".
De uma forma geral, estão incluídas em uma mesma terminologia realidades individuais
extremamente diversas. Torna-se imperativo lembrarmos que uma farmacodependência é uma
organização processual de um sintoma cuja gênese é tridimensional:a substância
psicoativa com suas propriedades farmacológicas específicas; o indivíduo, com suas
características de personalidade e sua singularidade biológica e; finalmente, o contexto
socio-cultural, onde se realiza este encontro entre indivíduo e droga.
Cabe inicialmente uma distinção extremamente importante na clínica: a diferenciação entre o usuário recreativo e o dependente de drogas. Embora a fronteira entre estas duas categorias não seja nítida, alguns elementos podem nos guiar nesta discriminação: a grande maioria dos usuários de droga não é e nunca vai ser dependente do produto; na grande maioria das vezes a droga é procurada como fonte de prazer tanto pelo usuário como pelo dependente; o dependente de drogas é um indivíduo para quem a droga passou a desempenhar um papel central na sua organização psíquica, na medida em que, através do prazer, ocupa lacunas importantes, tornando-se assim indispensável ao funcionamento psíquico daquele indivíduo (ou seja, um dependente, ao contrário do usuário, não pode prescindir da sua droga). Outro ponto fundamental a ser destacado é a especificidade da dependência humana: o ser humano busca ativamente a droga, enquanto que um animal só se torna farmacodependente através das mãos do homem. Esta constatação é importante para que o fenômeno dependência não seja, de forma extremamente simplista, reduzido a seus aspectos biológicos.
O que distingue então o usuário do dependente de
drogas? O dependente é um indivíduo que se encontra diante de uma realidade objetiva ou
subjetiva insuportável, realidade esta que não consegue modificar e da qual não
consegue se esquivar, restando-lhe como única alternativa a alteração da percepção
desta realidade. Esta alteração da percepção da realidade pode ser por ele obtida
através do uso da droga. Se tivermos em mente que a relação de dependência com a droga
é a única alternativa que restou para este indivíduo, torna-se compreensível que o
comportamento de drogar-se se efetive através de um ato impulsivo. Não se trata do
desejo de consumir drogas, mas da impossibilidade de não consumí-las. Estabelece-se
assim um duo indissociável indivíduo-droga, onde tudo o que não é pertinente a essa
relação passa a constituir pano de fundo na existência do dependente. Este duo
permanece indissociável enquanto a droga for capaz de propiciar esta alteração da
percepção de uma realidade insuportável, respondendo assim pela manutenção do
equilíbrio do indivíduo. Para o dependente, a droga é uma questão de sobrevivência.
Na última década, pesquisas vem demonstrando que a eficácia de cada modelo terapêutico depende de determinadas características dos farmacodependentes. Paralelamente, tenta-se caracterizar sub-grupos de dependentes, visando o estabelecimento de categorias tipológicas. As pesquisas relacionadas à tipologia são extremamente importantes para a compreensão da gênese e da expressão das dependências. Consequentemente, a caracterização tipológica das dependências implicará na possibilidade de adequarmos cada sub-tipo de dependente a modelos de tratamento específicos.
Além da individualização da abordagem, o tratamento de farmacodependentes deve ser instituído de forma global, incluindo as dimensões médica, psicoterápica e social.
O estabelecimento de um programa terapêutico baseia-se na avaliação individual de cada caso, que deve incluir os seguintes questionamentos:
Além das entrevistas de anamnese, exame físico e exame psíquico, podem se fazer necessárias avaliações específicas de cada caso através de questionários, testes psicológicos e exames laboratoriais.
A partir de um estudo aprofundado do indivíduo, torna-se possível a elaboração de um programa terapêutico específico, cujas estratégias devem preferencialmente ser discutidas em conjunto com o paciente.
Convém ressaltar que a possibilidade de sucesso de uma
intervenção é maior quando o paciente procura tratamento voluntariamente e quando
participa ativamente do estabelecimento de seu projeto terapêutico.
Modelos terapêuticos:
No atendimento de dependentes podemos caracterizar duas etapas
principais:desintoxicação, objetivando a retirada da substância; e, manutenção,
objetivando a reorganização da vida do indivíduo sem o uso prejudicial da substância
(seja em regime de abstinência, seja em um contexto de uso recreativo).
Sumarizamos a seguir as intervenções terapêuticas mais
freqüentemente utilizadas no tratamento das farmacodependências:
Desintoxicação: compreende
procedimentos dirigidos à retirada da droga. Na grande maioria dos casos deve ser
realizada ambulatorialmente, não sendo necessária a hospitalização. Compreende a
administração de medicamentos com o objetivo de minimizar sintomas decorrentes da
retirada da droga (ansiedade, depressão, "fissura", etc.).Ressaltamos que não
devem ser utilizadas medicações que potencialmente possam acarretar dependência
(benzodiazepínicos, por exemplo). Esta etapa do tratamento raramente requer mais de uma
semana para se efetivar. As características e a intensidade do sofrimento físico e
psíquico decorrentes da suspensão da droga dependem do tipo de substância utilizada e
do padrão de consumo da mesma. O apoio psicoterápico é de extrema valia já nesta fase
inicial do tratamento.
Farmacoterapia:A farmacoterapia
dos pacientes engloba o tratamento medicamentoso não somente dos quadros de
dependência/abstinência especificamente, como também dos eventuais distúrbios
psiquiátricos associados.
Psicoterapia individual: A psicoterapia individual é indicada na
abordagem psicodinâmica dos casos mais complexos e em situações que se mostrem de
alguma forma inadequadas para um trabalho em grupo. Esta modalidade de atendimento deve
ser desenvolvida por psicólogos ou psiquiatras com formação psicodinâmica.
Psicoterapia de grupo: A psicoterapia de grupo constitui recurso
terapêutico privilegiado na medida em que oferece ao dependente uma diversificação de
contatos interpessoais que possibilita o encontro com interlocutores que partilham das
mesmas expectativas,angústias, conquistas e frustrações. O grupo funciona como matriz
de novos modelos identificatórios, proporcionando a seus integrantes novos vínculos e
diferentes vetores de relacionamento.
Atendimento familiar: O atendimento familiar está indicado quando
a família ou o cônjuge aparecem como elemento significativo na história do uso de
drogas, seja como fator patogênico, seja como recurso de cura. Quando a família é vista
como recurso de cura, o atendimento, em geral breve, limita-se a um reconhecimento mútuo
das duas partes que compõem o mesmo sistema terapêutico: os familiares e a
instituição.
Quando um casal ou família procura tratamento em situação de conflito em cujo centro está o abuso de drogas por um de seus membros, a terapia sistêmica possibilita o diálogo entre os interessados, em um clima cooperativo de não julgamento. Abrem-se assim, possibilidades de novas formas de convivência onde a droga perde a função de comunicação.
A experiência dos últimos anos tem confirmado a terapia familiar como instrumento complementar e, por vezes, substituto da terapia individual, especialmente eficaz em casos de adolescentes.
Terapia ocupacional: A terapia
ocupacional possibilita o desenvolvimento de canais de expressão e comunicação não
verbais, constituindo valioso recurso terapêutico complementar.
Terapias comportamentais:
Constituem técnicas terapêuticas dirigidas à modificação de determinados padrões de
comportamento indesejáveis. Tem se mostrando satisfatoriamente eficazes em alguns tipos
de dependentes. Entretanto, freqüentemente têm sido utilizadas inadequadamente como
estratégia terapêutica isolada, com o risco de conduzirem apenas a um deslocamento de
sintoma, sem a necessária abordagem do indivíduo na sua totalidade.
Grupos comunitários de ajuda mútua:
São grupos constituídos por indivíduos que já apresentaram o problema e que
supostamente o tenham superado. É recomendável que sejam apoiados por profissionais de
ajuda familiarizados com a complexidade do assunto.
Limites da abordagem terapêutica:
Observamos índices de sucesso terapêutico satisfatórios a curto prazo, decorrentes das possibilidades do arsenal medicamentoso e das atuais estratégias de intervenção disponíveis. A longo prazo, os resultados são díspares e aleatórios, independentemente da orientação terapêutica utilizada. Além disso, as dificuldades de avaliação da eficácia dos modelos de tratamento continuam sendo enormes. Os critérios de melhora e de sucesso terapêutico são extremamente variáveis, ocasionando dificuldades de apreciação dos mesmos e comprometendo a possibilidade de comparação de modelos terapêuticos distintos. De qualquer maneira, a complexidade do fenômeno dependência e o pouco conhecimento de que dispomos ainda sobre o assunto justificam a diversidade de programas de tratamento e a multiplicidade de referenciais teóricos utilizados para a compreensão do problema. À luz do conhecimento atual, nenhum modelo de tratamento pode ser considerado superior aos demais.
A constatação das limitações da psicologia dinâmica
analítica clássica no tratamento das farmacodependências levou ao desenvolvimento de
técnicas cognitivas e comportamentalistas como alternativas de tratamento. Alguns dogmas
redutivistas originários da psicanálise impediram o reconhecimento da importância do
tipo de recurso terapêutico que estas técnicas representam, assim como da importância
dos recursos farmacoterápicos de que dispomos. Quando utilizadas dentro de uma
compreensão dinâmica abrangente, tais técnicas deixam de oferecer o risco de se
reduzirem apenas a mecanismos de controle social através da adequação de comportamentos
a uma norma arbitrariamente estabelecida. Por outro lado, o desenvolvimento tanto da
psicofarmacologia e farmacoterapia como de técnicas cognitivistas e comportamentais tem
afastado muitos terapeutas das grandes aquisições da psicologia dinâmica das últimas
décadas, fazendo-os perder a proporção da complexidade e da magnitude dos fenômenos
psíquicos. Conseqüentemente, recursos terapêuticos tão valiosos correm o risco de se
transformarem em instrumentos de manipulação do comportamento humano, desconsiderando
princípios éticos e afastando nossos pacientes da possibilidade de uma abordagem mais
ampla e integrada que favoreça o desenvolvimento de sua individualidade singular.
A singularidade da associação
Farmacodependência/AIDS:
Aspectos preventivos:
No que se refere às estratégias preventivas, se pretendemos conter a expansão do vírus entre os usuários de drogas, devemos ir mais além do que simplesmente informar sobre AIDS e suas formas de contágio.
Tem sido demonstrado que os usuários de drogas podem alterar comportamentos de risco, mesmo sem abandonar o uso de drogas. Assim, intervenções preventivas da infeção pelo HIV não devem ser confundidas com intervenções terapêuticas relacionadas ao abuso ou dependência de drogas.
Diversos trabalhos tem nos mostrado que a redução de risco tende a ser mais facilmente alcançada entre os usuários de drogas vinculados a programas de tratamento que se caracterizam por uma abordagem abrangente do indivíduo, com equipes que possuam conhecimentos biológicos, sociológicos e psicodinâmicos tanto do uso indevido de drogas quanto da infeção pelo HIV.
Entre as características dos programas de tratamento que favorecem a redução de comportamentos de risco, destacam-se:
Aspectos terapêuticos:
O toxicômano soropositivo tem que se haver com sua dependência, com uma moléstia infecto-contagiosa de evolução letal e com toda carga de preconceito que estas duas condições implicam.
Observamos, na clínica, que uma crise toxicomaníaca pode ser precipitada por ocasião da descoberta da soropositividade ou do aparecimento dos primeiros sintomas da AIDS.
Sobrepondo-se às distintas reações psicológicas que aparecem a partir da soroconversão, têm sido descritos quadros cerebrais orgânicos emergentes neste período da história natural da doença.
Diversos trabalhos tem demonstrado alterações neuro-psicológicas em indivíduos HIV positivos ainda assintomáticos. Foram ainda encontradas alterações no líquido céfalo-raquidiano destes indivíduos, independentemente da presença de sintomas neuropsiquiátricos, sugerindo comprometimento precoce do SNC. Distúrbios orgânico-cerebrais agudos podem se manifestar por ocasião da soroconversão, sendo atribuídos à ação viral diretamente no sistema nervoso.
Os quadros psiquiátricos orgânicos relacionados a AIDS podem ser divididos em três grandes grupos segundo a sua etiologia:
Grupo I: relacionado a patologias infecciosas oportunistas do SNC, de etiologia parasitária, fúngica, bacteriana ou viral (Toxoplasmose, Criptococose, Tuberculose, por ex.);
Grupo II: relacionado a patologias tumorais do SNC, cujo quadro sintomatológico é característico de processos expansivos de evolução dramática (por exemplo, Sarcoma de Kaposi e, mais freqüentemente, linfoma imunoblástico primitivo).
Grupo III: relacionado ao neurotropismo do vírus. Os quadros podem se manifestar de forma aguda ou crônica. As manifestações agudas, freqüentemente associadas ao momento de soroconversão, expressam-se habitualmente através de uma síndrome confusional, com distúrbios de consciência e orientação. As manifestações crônicas (Síndromes psico-orgânicos) se expressam mais freqüentemente através de uma síndrome demencial, com distúrbios de concentração, memória e sintomas depressivos.
As manifestações de ansiedade acompanhadas de sintomas neurovegetativos e as manifestações somáticas dos quadros depressivos tais como inapetência, emagrecimento, insônia, fraqueza e inibição psicomotora, constituem quadro de difícil diagnóstico diferencial com o Síndrome psico-orgânico relacionado ao neurotropismo do HIV. Alguns estudos estimam a prevalência de uma síndrome demencial em 60% dos indivíduos portadores de AIDS, síndrome esta que pode ser a manifestação predominante ou, em alguns casos, a única manifestação da infeção. A similaridade fenomenológica do quadro psico-orgânico e dos quadros depressivos associados a infeção pelo HIV pode requerer a utilização de propedêutica armada para o diagnóstico diferencial das duas entidades nosológicas. O exame tomográfico pode evidenciar atrofia cerebral com dilatação ventricular nos quadros de etiologia orgânica. Cabe ainda ressaltar a possibilidade dos quadros se instalarem concomitantemente, não cabendo necessariamente raciocínio diagnóstico de exclusão.
Com relação aos aspectos psicológicos, as reações frente à descoberta da soropositividade dependem das características de personalidade do indivíduo bem como das situações específicas do momento da descoberta. Para grande parcela dos dependentes, a questão configura uma realidade por demais abstrata para poder desencadear reações ansiosas importantes. Observam-se atitudes de indiferença ou incredulidade, componentes do mecanismo de negação frente à angústia de morte. Muitos intensificam atitudes de risco para a infeção, tanto através da multiplicação dos contatos sexuais quanto pela utilização de seringas em grupo. A negação, enquanto mecanismo de defesa que o indivíduo lança mão para lidar com esta realidade insuportável, deve, dentro de certos limites, ser devidamente respeitada. Outros farmacodependentes, em contra partida, vivenciam este momento como uma possibilidade de elaboração psíquica da conduta toxicomaníaca e de toda significação subjacente à mesma. Alguns indivíduos chegam assim a interromper o uso de drogas a partir da constatação da sua soropositividade. A procura de serviços de desintoxicação assim como a aderência ao tratamento são significativamente maiores nos toxicômanos soropositivos. Trata-se, portanto, de um momento particularmente propício para a instauração de uma intervenção terapêutica.
BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA:
Denise Razzouk e Giovanni Torello
Data da última modificação:23/08/00
http://www.priory.com/psych/dartiu.htm