Psiquiatria Baseada em Evidências:
coordenação: Dra Ana C ChavesPsicocirurgia no Transtorno Obsessivo-Compulsivo
Antonio Carlos Lopes* *Médico residente em Psiquiatria, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP.
Tido atualmente como o quarto mais freqüente transtorno psiquiátrico nos Estados Unidos, o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) vem merecendo uma grande atenção nos últimos anos, em decorrência de novas descobertas relacionadas a possíveis mecanismos fisiopatológicos e suas implicações na ampla gama de tratamentos disponíveis, sejam eles psicoterápicos, farmacológicos ou neurocirúrgicos.
A prevalência em 6 meses do TOC tem sido estimada em 1,6% (Myers et al., 1984) e a prevalência ao longo da vida em 2,5 % (Robins et al., 1984), segundo o "National Epidemiology Catchment Area (ECA) survey". Estudos multicêntricos internacionais sugerem prevalências anual e ao longo da vida variando de 1,1-1,8 % e 1,9-2,5 %, respectivamente (Weissman et al., 1994). Acredita-se que 50 milhões de pessoas sofram de TOC em todo o mundo (Sasson et al., 1997).
Basicamente, o que caracteriza o TOC, segundo os critérios do DSMIV (
American Psychiatric Association, 1994) é a presença de obsessões ou compulsões, interferindo no funcionamento normal de um indivíduo. Por obsessões, definimos como pensamentos, impulsos ou imagens intrusivas, recorrentes e persistentes, capazes de provocar ansiedade, e percebidas como absurdas pelo próprio paciente, sem prejuízo da crítica. Compulsões, por sua vez, representam comportamentos ou atos mentais em resposta a uma obsessão, no sentido de aliviar ou evitar uma angústia. A maioria das obsessões referem-se a medos de contaminação, obsessões de caráter agressivo, sexual ou somático, preocupações com simetria, etc. Compulsões relacionadas são representadas por rituais de lavagem/limpeza, comportamentos de verificação, rituais de simetria ou organização, contar compulsivo e colecionismo. Os sintomas geralmente se iniciam na metade da terceira e início da quarta décadas de vida e a proporção de mulheres afetadas é ligeiramente superior a de homens (Weissman et al., 1994).O TOC apresenta um curso crônico, com apenas alguns períodos de melhora, promovendo um importante comprometimento social, ocupacional, familiar e pessoal, por vezes equivalente ao de doenças crônicas como a esquizofrenia (Steketee, 1997).
Atualmente, com o advento de novas técnicas de neuro-imagem, como a tomografia por emissão de fóton único (SPECT), a tomografia por emissão de pósitron (PET) e a ressonância magnética funcional (fMRI), tem-se observado sinais de aumento de metabolismo no córtex órbito-frontal, no giro do cíngulo e nos núcleos da base de pacientes com TOC (Trivedi, 1996). Postula-se uma possível disfunção cerebral no circuito neuronal fronto-estriatal-pálido-talâmico-frontal nestes pacientes (Modell et al., 1989; Baxter et al., 1992). Tanto a terapia comportamental, quanto o uso de clomipramina, parecem diminuir o metabolismo em algumas destas áreas (Baxter et al., 1992).
A maioria dos pacientes obsessivo-compulsivos têm-se beneficiado de terapia comportamental e/ou farmacoterapia com relativo sucesso. Há relatos na literatura de melhora do TOC em 60-80 % dos pacientes submetidos específicamente a duas técnicas comportamentais, denominadas exposição e prevenção de resposta (Rasmussen & Eisen, 1997; Perse, 1988). No entanto, 20 a 30 % dos pacientes se recusam a realizar terapia comportamental (Rasmussen & Eisen, 1997). Além do mais, dentre aqueles que receberam terapia comportamental, 20 a 30 % não apresentam qualquer melhora (Perse, 1988). Depressão, freqüentemente associada ao TOC, representa também uma contra-indicação ao seu uso. Há ainda a opção farmacológica: os inibidores da recaptação da serotonina (IRS), sejam eles específicos ou não, são reconhecidamente o tratamento medicamentoso de escolha para o TOC. Cerca de 60 a 70 % dos pacientes com TOC costumam melhorar moderadamente das obsessões/compulsões, após pelo menos 10 semanas de tratamento com um IRS específico (Rasmussen & Eisen, 1997; Jenike & Rauch, 1994). Porém, 20 a 30 % dos indivíduos não se beneficiam, com melhora mínima ou nenhuma. (Rasmussen & Eisen, 1997; Jenike & Rauch, 1994). Tenta-se, nestes casos, a associação com outras medicações, como antipsicóticos, buspirona, clonazepam, lítio, fenfluramina, triptofano, clonidina, inibidores da mono-amino oxidase, etc. (Facorro & Gomez-Hernández, 1997; Turón & Salgado, 1995; Jenike & Rauch, 1994). A eletroconvulsoterapia até hoje não se mostrou eficaz. Apesar de todos os esforços, muitos pacientes continuam refratários a qualquer espécie de tratamento psicoterápico ou psicofarmacológico, mesmo que associados, apresentando aumento significativo do risco de suicídio.
Para estes pacientes (os quais não são tão infreqüentes, na prática clínica), a psicocirurgia têm-se apresentado como uma alternativa terapêutica. Supõe-se que intervenções psicocirúrgicas atuariam por interromper circuitos neuronais hiperativos ou disfuncionais no TOC, como citado acima nos estudos de neuro-imagem funcional (Marino & Cosgrove, 1997; Trivedi, 1996; Mindus & Jenike, 1992).
Proposto inicialmente em 1935 pelo neurologista português Egas Moniz, ganhador do prêmio Nobel de Medicina, o tratamento neurocirúrgico de doenças mentais, popularizado pelo termo "psicocirurgia", constituía-se nas primeiras décadas de utilização em grandes intervenções cirúrgicas, com as mais variadas complicações, déficits cognitivos e inclusive supostas alterações de personalidade (Marino & Cosgrove, 1997; Malizia & Bridges, 1995). Seu uso, principalmente nas décadas de 40 e 50, fôra indiscriminado e pouco criterioso quanto a indicações precisas das diferentes técnicas.
Com a introdução de técnicas estereotáxicas, por Spiegel e Wycis, em 1947, foi possível a realização de cirurgias menores, mais precisas, com uma gama menor de efeitos adversos ou complicações pós-cirúrgicos (Fodstad et al., 1982; Speigel et al., 1947).
Apenas o transtorno obsessivo-compulsivo e a depressão maior, ambos em suas formas grave e refratária a qualquer intervenção, têm recebido indicações psicocirúrgicas na atualidade (Sachdev & Sachdev, 1997).
Hoje em dia, utilizam-se exclusivamente procedimentos estereotáxicos na terapêutica cirúrgica do TOC, notadamente as seguintes técnicas:
Embora hajam variações entre os diferentes centros nos quais é realizada, em termos gerais, as indicações de tratamento neurocirúrgico para o TOC têm sido bastante consistentes (Mindus & Jenike, 1992):
Quanto às contra-indicações, estas habitualmente incluem (Mindus & Jenike, 1992):
Idade inferior a 20 anos, ou superior a 65 anos.
O paciente possui outro diagnóstico psiquiátrico complicador (eixo I), atualmente ou no curso da vida, como síndrome cerebral orgânica, transtorno delirante, ou abuso manifesto de álcool, drogas sedativas ou ilícitas. Certos autores incluem também transtorno somatoforme. Por complicador denominam-se aquelas condições capazes de prejudicar substancialmente a função, ou o tratamento, ou a capacidade do paciente em aderir ao tratamento, ou induzi-lo a efeitos adversos graves, como intoxicações, reações paradoxais, etc.
Contra-indicações relativas: um diagnóstico complicador atual de transtorno de personalidade (eixo II), do grupo A (como o transtorno de personalidade paranóide) ou B (como os transtornos de personalidade anti-social, "borderline" ou histriônica). Quanto ao grupo C (como os transtornos de personalidade evitativa ou obsessivo-compulsiva) não se consideram contra-indicações, por poderem desaparecer com o tratamento do TOC.
O paciente possui um diagnóstico atual complicador do eixo III (doença clínica), com comprometimento cerebral (como atrofia ou tumor).
Vários estudos têm sido publicados quanto `a melhora dos sintomas e efeitos adversos da psicocirurgia no TOC. Por exemplo: Jenike et al., 1991, acompanharam 33 pacientes com diagnóstico de TOC (DSM-III-R) submetidos `a cingulotomia. Destes, 4 cometeram suicídio durante o seguimento de 1 ano, nos pós-operatório. Dos 29 restantes, 9 (31%) tiveram melhora significativa dos sintomas de TOC. Dentre os efeitos adversos pós-cirúrgicos, 3 (9 %) evoluíram com convulsões ocasionais, 1 (3 %) apresentou diminuição de memória e 2 (6 %) tiveram um episódio maníaco. Muitos dos pacientes incluídos no estudo, no entanto, não tinham sido submetidos a toda gama de antidepressivos disponíveis, e apenas 9 % tinham realizado terapia comportamental no pré-operatório. Os critérios de seleção da amostra de pacientes não foram homogêneos, bem como a avaliação do estado psicopatógico atual.
Dezoito pacientes com TOC grave e refratário a tratamento farmacológico/comportamental foram seguidos, após serem submetidos `a cingulotomia, por Baer et al., 1995. Houve melhora clínica em 28 % dos indivíduos, definido como diminuição de 35 % nos escores da escala de sintomas obsessivo-compulsivos de Yale-Brown (Y-BOCS), no período de 27 meses. Não houve nenhum caso de suicídio, ou demais alterações psiquiátricas ou cognitivas.
Em relação à tractotomia subcaudado, Bridges et al., 1973, compararam retrospectivamente em um estudo caso-controle 24 pacientes com TOC grave e 24 pacientes com depressão grave, submetidos a esta cirurgia. Dezesseis (67 %) dos pacientes com TOC e 17 (71 %) dos deprimidos foram classificados como assintomáticos ou muito melhores no final do seguimento de 3 anos. Dois (8 %) dos pacientes, em ambos os grupos, não apresentaram nenhuma melhora.
Observam-se, no entanto, inúmeros problemas metodológicos em grande parte dos trabalhos, a maioria relatos de caso ou acompanhamentos prospectivos de um coorte de pacientes submetidos a uma das técnicas. Viéses de seleção, de execução e detecção são usualmente encontrados. Vários centros têm evitado realizar ensaios clínicos randomizados, baseados em considerações éticas, especialmente quanto à escolha de um grupo controle capaz de submeter-se a uma cirurgia "falsa" (Earp, 1979). Com a introdução de técnicas radiocirúrgicas, portanto sem abertura do crânio, já é possível não apenas a criação de um grupo controle, sem maiores riscos ao paciente, como também a introdução de um desenho metodológico duplo-cego. Um ensaio clínico randomizado com a técnica de capsulotomia vem sendo realizado neste sentido (Rasmussen et al., 1997).
São poucos os estudos de revisão da literatura sobre psicocirurgia, especialmente no TOC. Não há até o momento nenhuma revisão sistemática abrangente sobre o assunto, muito menos trabalhos de meta-análise sobre possíveis ensaios clínicos disponíveis. Neste sentido, estamos iniciando uma revisão sistemática da literatura, conjuntamente com a Cochrane Collaboration.
Comentários -
O artigo do Dr. Antonio Carlos é muito interessante porque aborda um assunto raro em Psiquiatria: o uso de técnicas cirúrgicas para o tratamento de transtornos mentais.
Este é um assunto, que se por um lado pode dar um alento para um paciente com TOC que não melhora com nenhuma terapia convencional, por outro remete-nos a preconceitos como o uso antigamente de psicocirurgia para o controle de pacientes violentos em alguns centros.
Contudo, este artigo nos mostra de forma clara quais são as opções de tratamento nos transtornos obsessivos compulsivos e que uma grande parte destes pacientes são resistentes ao tratamento convencional. Relata os critérios de indicação para este procedimento e as técnicas cirúrgicas empregadas.
Apesar de não ser uma revisão sistemática da literatura o Dr. Antonio Carlos mostrou um grande cuidado na seleção dos artigos para revisão e principalmente informa ao leitor sobre os principais problemas metodológicos encontrados nos artigos selecionados. Desmistifica a noção de que ensaios clínicos randomizados são estudos utilizados somente para avaliar os tratamentos com drogas, e relata que já existe inclusive um estudo controlado em andamento. Esperamos que este estudo possa ter menos problemas na metodologia para podermos obter mais evidências de que a psicocirurgia seja uma boa opção para pacientes com TOC resistentes ao tratamento convencional.
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Denise Razzouk e Giovanni Torello
Data da última modificação:23/08/00
http://www.priory.com/psych/obsecomp.htm