Notas Ocasionais do National Institute of Mental Health
Visiting Associate Clinical Neuroendocrine Branch
San Diego em Maio:Os Congressos das Associações de Psicanálise e de Psiquiatria (Norte Americanas)
San Diego fica
na costa da Califórnia, a poucos quilômetros da fronteira mexicana. Trata-se de uma
cidade moderna, muito influenciada pela cultura hispânica e por outros povos da costa do
Pacífico. A cidade e seus arredores são belíssimos, com destaque para a illha do
Coronado (com o famoso hotel Del Coronado, construído em 1887 em estilo vitoriano, todo
em madeira), as cidades e bairros ao norte, dentre os quais La Jolla, Del Mar e Encinitas.
San Diego também hospeda parte da marinha de guerra norte-americana e durante os
congressos, três dos porta-aviões da frota do Pacífico estavam no local, dentre os
quais o famoso Nimitz. O cinza dos barcos fazia um contraste sóbrio ao colorido da cidade
e de seus habitantes. O maior zoológico do mundo fica na região e inclui alguns
exemplares de Pandas, uma raridade fora da China.
Relatos a respeito do Congresso da
Associação de Psiquiatria Norte Americana (APA) tendem a ser coloridos por impressões
pessoais, até mesmo por atitudes teóricas a respeito do trabalho psiquiátrico.
Certamente a magnitude do evento, o grau de investimento financeiro e a onipresença das
indústrias farmacêuticas impressionam e fazem meditar sobre para onde caminha a
psiquiatria americana e, por conseqüência, boa parte da psiquiatria mundial.
Participaram do congresso mais de 15 mil psiquiatras dos Estados Unidos, América Latina,
Europa e outros lugares do mundo. Os brasileiros marcaram forte presença, com vários
participantes e apresentações científicas
A semana anterior ao congresso da APA foi marcada pela reunião da
Associação de Psicanálise Americana (APsaA), que vale à pena comentar. O movimento
psicanalítico vinha tingido por um certo hermetismo teórico sendo que os diversos
institutos e correntes americanos eram mais ligados a figuras por vezes autoritárias do
que a tentativas de destilar dos diversos pontos de vista os melhores paradigmas
teóricos. Otto Kernberg, em uma palestra memorável, veio desmistificar tais figuras
autoritárias (e mesmo ironizar a si mesmo) defendendo a necessidade de ir além do
paroquialismo dos diversos institutos. Renovação foi a palavra de ordem do encontro.
Ainda mais interessante é o atual interesse
do movimento psicanalítico americano pelas neurociências. Uma discussão sobre a
neurobiologia da regulação afetiva marcou o primeiro dia do congresso. A idéia era
abrir espaço aos mais jovens, retomar a discussão do Projeto de uma Psicologia para
Neurólogos de Freud sob o ponto de vista do atual conhecimento neurobiológico, de
redes neurais e da plasticidade neurofisiológica.
A idéia, em seus vários níveis, foi compartilhada por outros
apresentadores durante o congresso da APA. Um dos cursos da APA, ministrado por John
Livesley (O Manejo Prático dos Distúrbios de Personalidade) abordou justamente a
questão da integração de diversas abordagens. O apresentador propôs o uso combinado de
conceitos psicanalíticos e comportamentais visando não apenas ao insight do
pacientes, mas a mudança efetiva de comportamentos inadaptativos e ao desenvolvimento de
estratégias para lidar com traços de personalidade de origem genética (e menos sujeitos
a intervenções sociais) dentro de um sistema de metas ligado a uma hieraquia de
intervenções psicoterapêuticas. Para Livesley, a dicotomia entre biológico e
psicológico e a conseqüente polarização teórica causou muitos problemas
desnecessários e deturpou a busca de abordagens terapêuticas efetivas. Psicanalistas
durante o congresso da APsaA, em contrapartida, mostraram poucos pruridos em medicar seus
pacientes, enquanto que Livesley considerou o uso de medicamentos no manejo dos
transtornos da personalidade nada mais do que mais uma ferramenta cujo uso deve ser
considerado não segundo critérios absolutos, mas de acordo com as necessidades
estratégicas do momento.
Por que então dividir os diagnósticos em eixo I e eixo II ?
Alguns sinais de insatisfação com esta divisão do DSM-IV (Critérios de Diagnóstico e
Estatística das Doenças Mentais, 4a Edição) puderam ser ouvidos em ambos os
congressos. Uma das críticas era que tal divisão se baseou na hipótese de que, ao
contrário das doenças mentais classificadas em eixo I, os transtornos da personalidade
teriam uma etiologia social, como problemas durante o desenvolvimento psicológico, abuso
sexual, etc.
Portanto, a divisão entre eixos I e II vem refletir a falsa
dicotomia entre o biológico e o psicológico que embasa o sistema DSM. Evidências de que
traços de personalidade tem uma natureza genética e de que padrões de comportamento
surgem da interação complexa entre biologia e ambiente foi a base das propostas
terapêuticas de Livesley e de dúvidas sobre a sobriedade teórica da divisão entre
eixos I e II. A questão é muito complicada, mas talvez (pelo menos em minha opinião)
seja possível imaginar para o século XXI um sistema diagnóstico baseado em dados
empíricos, mas ao contrário do DSM-IV que não seja ateórico, mas assumidamente
influenciado por paradigmas novos provenientes da hibridização de modelos psicológicos
e neurofisiológicos.
O encontro da APA também foi fortemente influenciado pelas novas
medicações disponíveis no mercado americano, como antipsicóticos atípicos
(freqüentemente usados como primeira opção por psiquiatras e residentes),
antidepressivos, medicamentos anticolinesterásicos para o mal de Alzheimer, e evidências
preliminares da utilidade de novos anticonvulsivantes (como gabapentina e lamotrigine) no
manejo de transtornos do humor.
Um simpósio ressaltou a importância dos transtornos afetivos
subsindrômicos. Aparentemente, a presença residual de sintomas depressivos, mesmo na
ausência de critérios para depressão menor ou maior indica risco aumentado para
recaída precoce. Estados subsindrômicos são os mais freqüentes entre episódios da
doença afetiva e associados com prejuízo funcional importante. Neste mesmo simpósio,
foi discutida a presença de sintomas depressivos em estados de luto. Depressão em
estados de luto cursa como depressão desencadeada por outros estressores severos e deve
ser tratada farmacologicamente com a mesma agressividade, a despeito da possível
compreensibilidade do fenômeno. Durante a apresentação, foi questionada a necessidade
de se manter o diagnóstico de luto no sistema DSM, já que não foram encontradas
evidências de diferenças em relação ao desencadeamento de depressão por outros
estressores. A presença de história familiar, episódios depressivos anteriores e
problemas médicos predizeram o quadro depressivo nesta população. Curiosamente,
indivíduos mais jovens mostraram risco maior após a morte do/a esposo/a, talvez pelas
demandas sociais mais intensas (ex. filhos pequenos) nesta faixa etária.
A diversidade do encontro foi marcada por reuniões da Associação
de Psiquiatras Gays e Lésbicas, reuniões voltadas a graduados em faculdades no exterior
e manifestações na porta do centro de convenções contra os "psiquiatras que
drogam crianças". Associações de pacientes também se fizeram representar, e a
visão da sociedade a respeito dos doentes mentais foi abordada em diversas reuniões e
filmes.
Houve também reuniões de psiquiatria política, uma
especialização pouco conhecida no Brasil, que se dedica ao desenvolvimento de modelos e
intervenções para facilitar a interação entre grupos, povos, nações (a próxima
reunião internacional do grupo de psiquiatria política será na Polônia, em julho). Em
particular, deve ser ressaltada uma brilhante apresentação sobre a Anatomia do
Preconceito por Elisabeth Young-Bruehl, que considerou o preconceito sob o ponto de
vista caracterológico, dividido em indivíduos predominantemente obsessivos, histéricos
ou narcisistas. A apresentação foi marcada por diversos exemplos históricos
norte-americanos e europeus. Giovanni Torello
também estava por lá, falando sobre a Psiquiatria
Online no Brasil, e deve trazer sua experiência no congresso para a revista.
Denise Razzouk e Giovanni Torello
Data da última modificação:23/08/00
http://www.priory.com/psych/psdiego.htm