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REFLEXÕES DE UM PSIQUIATRA QUE FOI AO 16° CONGRESSO BRASILEIRO EM SÃO PAULO E QUASE ENLOUQUECEU.
Prometo escrever para o Presidente da ICM(b)- Indústria de Congressos Médicos no Brasil - reclamando de que quase fiquei louco quando presente ao último Congresso Brasileiro de Psiquiatria.
Quero exemplificar a vivência horripilante que tive descrevendo dois momentos: quando percorrendo o "caminho estandártico" ( momento 1) e quando assistindo às palestras (das mais diversas, momento 2).
Momento 1: chamo de "caminho estandártico" à peregrinação que se realiza serpiginosamente por entre os estandes da indústria farmacêutica que não oferece só novos medicamentos, mas também informações científicas, brindes, cupons para sorteios, guloseimas para todos os gostos (se bem que neste ano este último item deixou a desejar). Enquanto experimentava a sensação estranhamente dialética de desviar/abalroar conhecidos no Congresso (apertadamente, pois o espaço era exíguo para dois mil psiquiatras famintos), meu sofrimento pôde ser assim resumido conforme o vivenciei no primeiro e no último dia do Congresso:
- Último dia (vivência elaborada): -1° dia (vivência-bruta):
amostras do Remeron amostras de canapés
dossiê do Prozac bulas com patês
revistas da Sociedade petiscos de Cipramil
xícaras de café sacolas de viagem
iscas de canapés quitutes de Venlafaxina
sorteio de livros cupons de água
petiscos com patês enfeites vazios
memento da Zyprexa revistar a sociedade
quitutes de sabor dossiê de café
latinhas de refrigerante provas de Prozac
bulas de Venlafaxina iscas de passagens
enfeites de consultório agendas vazias
data do Zoloft latinhas de Zyprexa
provas de petit-four bulas de sabor
garrafas de água xícaras de Zoloft
cupons para viagens garrafadas de Remeron
agenda do Doutor sorteio de doutores
sacolas vazias amamento do doutor
Momento 2: assistindo às palestras, tive uma enorme dificuldade para entender as coisas que não entendo. Noutras palavras: na minha profissão, eu vejo o meu paciente (pessoa que sofre), e vejo eu mesmo ( pessoa-médico que também, não raramente, sofre). Tenho dificuldade para ver as coisas que a Ciência todo ano descobre que existem dentro destas duas pessoas. Talvez por serem estas coisas muito pequenininhas, já me disseram. Ou porque todo ano se lhes descobrem umas tais substitutas, mais avançadas, mais próximas da Verdade, mais à altura do Progresso Tecnológico que as desvelou. O fato é que eu continuo sempre, a cada ano, só podendo ver eu mesmo, o meu paciente, e a relação intersubjetiva que se estabelece entre nós. Acho que eu optei por desconfiar daquele Conhecimento que aprioristicamente decidiu prescindir da minha compreensão e da dos que irão consumir este Conhecimento. Ou seja, se o Conhecimento, ao ser forjado, não integrou a possibilidade de ser compreendido por seus compradores e por seus objetos de estudo, é natural que este Conhecimento "Científico" chegue a mim como algo ... incompreensível. Julgo esta forma de produção de conhecimento autoritária, despótica e subserviente à ideologia que a inspira e financia. Trata-se de um Saber a serviço de um Poder instituído, majoritário, que ao invés de cura pode trazer é discriminação, escravidão e doença.
Ora, pergunto: sentir-se assim excluído do processo de produção do Saber, mesmo sendo objeto deste Saber (no caso dos nossos pacientes) ou um consumidor deste Saber ( no caso de ambos, psiquiatras e pacientes) seria um sintoma de sanidade ou de desadaptação? Saúde ou doença? Ora, é claro que se trata de um sintoma de indisciplina, de revolta, mas um sintoma sintônico à situação que o engendrou; um sintoma sadio, bastante compreensível e esperado de indivíduos, médicos ou leigos, ainda não irremediavelmente tornados escravos ou prisioneiros.
Em nove anos de carreira como psiquiatra, percebo que tem havido um crescente na minha participação em Congressos da especialidade: nos primeiros anos, eu ouvia e não entendia; nos anos que se seguiram, eu ouvia, mas descria; e atualmente, eu ouço e sofro. De um incômodo suportável - o da fuga da compreensão - hoje chego a experimentar um incômodo muito maior, quase enlouquecedor: o incômodo de estar atado, passivo, diante de um grandioso "Corpo de Conhecimentos"articulado que me enfia goela abaixo um Saber dado, acabado, ao qual fico subjugado porque (a) é dado que eu preciso deste Saber, como homem e como médico; (b) porque este Saber me sufoca, apresentando-se como A Verdade que poderá explicar a minha existência, as minhas angústias, as minhas dúvidas, as minhas necessidades e os meus desvios, prometendo-me - senão para hoje, pelo menos para um Congresso de um dos próximos anos, quando a "Ciência" tiver chegado a "novas descobertas" - um estado de preenchimento pleno, livre de todas as faltas que eu sinto enquanto ser-no-mundo*; (c)e subjugado porque não fui incluído no processo de produção deste Saber, apesar de sempre ter sido o seu objeto e consumidor último.
O que será que os empresários do Conhecimento pretendem? Acho que pretendem que, agora, saiamos do Congresso "orientando"nossos pacientes e a população, perguntando-lhes assim: você sabe qual é a loucura produzida em você por um vírus respiratório que sua mãe contraiu durante a incipiente gestação do seu ser?
* * *
Desvencilhei-me, pelo insight, da possibilidade de enlouquecer, pelo menos neste Congresso. Mas creio que o meu sofrer durante o evento me fez supor que há pessoas em nossa sociedade que enlouquecem porque não suportam a desigualdade e as relações predatórias perpetradas pelo assim chamado "Conhecimento Científico". E o tema do Congresso era "cidadania"...
Eu pergunto: qual cidadania? A cidadania enquanto significante que a mídia veicula e diviniza ? A cidadania enquanto sucessão de fonemas que temos de emitir para sermos hoje considerados politicamente corretos? Ora, se foi só isto, acho que não valeu; foi uma espécie de trote passado à comunidade de psiquiatras.
Alguns poucos proferimentos realmente trataram do assunto "Cidadania e Direito à Saúde Mental", segundo o entendo. Outros somente o visitaram em seus títulos. E a maioria, nem isto. Mas o que eu acho mais importante de se notar aqui é que, mesmo quando as palestras
* "Eu passo".Não quero chegar a este estado, nem esperar por ele, nem fazer barganhas com a "Ciência"para obtê-lo.
não incluíram este significante nem em seus títulos nem no conteúdo do que foi apresentado, mesmo aí houve tratamento do assunto "Cidadania". Ou seja, não podemos dizer que houve indiferença. O assunto foi tratado em todos os proferimentos do Congresso. Na maior parte deles, foi destratado. Maltratado. Destruído. Despedaçado, o que é bem distinto do descaso para com o assunto.
Alguns expositores falaram que "hoje sabemos que o cientista-observador está implicado no seu objeto de estudo e observação". Finalmente! Finalmente foi aceito (ou somente falado?) pelos principais articuladores do conhecimento psiquiátrico atual - com décadas de atraso - aquilo que já fôra enunciado por matemáticos, físicos, lógicos e epistemólogos (K. Gödel, K. Popper, Foucault, T. Kuhn, F. Capra, e o brasileiro Rubem Alves, para citar apenas alguns - se bem que ainda sejam poucos para as necessidades de nossa Ciência). No entanto, algo me faz supor que os expositores deste Congresso, ou não sabem do que estão falando, ou estão dando um passo para a frente e dois para trás (para usar um referencial de que eles mesmos gostam muito: o do "passo para a frente"; do "tijolinho a mais com que a Ciência nos brindou", etc). Por que digo isto? Porque o observador implicou-se ( ou diz tê-lo feito) mas o objeto ( o usuário, o consumidor) do conhecimento promulgado continua excluído das formas de produção deste Saber. Isto não é Ciência.
Alguém que esteve presente ao "Simpósio Internacional sobre Depressão"me contou que, a uma certa altura, um renomado professor de Psiquiatria disse que "precisamos dar um tempo, parar e refletir; porque não estamos mais dizendo coisa com coisa com relação à depressão..." Ouvi isto no primeiro dia de Congresso e fiquei otimista. Porém, meu entusiasmo só durou até o terceiro dia da programação científica, quando soube que este mesmo professor, em conferência, teria preconizado o uso de anti-depressivos para o povo para a regulação de alterações subclínicas de humor. Alterações que, embora subclínicas, se não acontecessem permitiriam ao humano ser mais feliz; ou menos lábil; mais produtivo; menos agressivo; mais adaptado ao seu próximo ( ou seu meio), etc. Estarrecido, coube-me perguntar: onde está a Cidadania? Não estou dizendo que a Cidadania está agredida porque os psiquiatras-governantes decidiram dar remédio pro povo. Não é só isto. Estou é querendo denunciar que a Psiquiatria continua caminhando no sentido de desresponsabilizar o ser por seus atos e seus sintomas. Subtrair ao homem sua responsabilidade, inclusive pelo seu padecimento,é arrancar-lhe sua Cidadania. Se a sociedade se convencer de que não é responsável pelo seu sofrer e pela desadaptação entre seus membros, teremos feito um acordo com a cegueira e um atraso de anos-luz. A noção de Cidadania terá, então, perdido grande parte de sua substância mais essencial, conforme eu a vejo. Parabenize-se, então, os loucos que, mesmo sendo minoria excluída, recuperam-se (alguns) e resgatam dentro de si algo de menos doentio ao dizer "Não somos responsáveis pelos nossos sintomas mas somos pelas nossas reações a eles" ( frase constituinte do boletim do projeto Fênix, que circulou durante o Congresso). Em tempo: aqui, quando digo menos-doentio não é em relação ao "restante"do que há no louco, que seria o mais-doentio; é menos doentio em comparação com o pretendido pelos nossos psiquiatras-governantes.Acho que a discrepância entre as declarações do eminente professor pode ser explicada em que, na declaração do primeiro dia de Congresso, o que faltou de convencimento pessoal de seu autor, sobrou de vocação retórica.
A Ciência não pode ser imparcial porque, se for, deixa de ser Ciência. Creio se fazer necessário notar uma sutileza: a verdadeira Ciência não prega a assepsia, mas a igualdade.
* * *
Finalizando, vou também propor na carta que escreverei para o Presidente da ICM(b) uma redução no preço da inscrição do evento. Vou basear minha proposta na adoção, daqui pra frente, todo ano, do conhecido conceito de insalubridade profissional. Pois claro, veja-se como o Congresso é insalubre! Eu proponho que a ficha de inscrição para o Congresso continue vindo com um campo onde se anote o preço que você vai pagar; um segundo campo onde você acresça o preço do(s) curso(s) que você vai fazer e ... um terceiro campo onde você anote o grau de insalubridade ao qual você se pretende expor. Podemos adotar, aqui também, um escalonamento de graus de insalubridade com a respectiva porcentagem a ser subtraída do preço total da inscrição. Por exemplo:
- Grau 1 de insalubridade: desconto de 10%. Por exemplo, para os casos dos palestrantes que, tendo apresentado uma novidade-promissora-do-Éden para seus ouvintes, ficam muito ansiosos com as perguntas que lhe farão ao final;
- Grau 2 de insalubridade: desconto de 20%. Para os palestrantes que, terminando sua parte, têm de sair do recinto porque alguém lhes incumbiu de ir receber um professor estrangeiro na hora do intervalo e, obviamente, perder o almoço é estressante;
- Grau 3 de insalubridade: desconto de 30%. Para os palestrantes que, durante suas preleções, para convencer a platéia da inatacabilidade da descoberta científica para a qual servem de arautos, esforçaram-se tanto que ficaram extenuados, alongaram-se a ponto de o tempo acabar e não houve mais tempo para a platéia fazer perguntas, inclusive porque a mesma se compadeceu do estado de exaustão dos ministrantes;
- Grau 4 de insalubridade: desconto de 40%. Para os ouvintes da platéia que engoliram tudo, mas não puderam nem arrotar ou regurgitar, porque o tempo acabou e só os expositores falaram;
- Grau 5 de insalubridade: desconto de 50%. Para os inscritos que pretendem enfrentar o "caminho estandártico". A maior insalubridade fica reservada aos que farão o "footing"pela passarela, apertando-se contritos, esbarrando em colegas e desafetos, suando com as luzes dos estandes, tendo seu campo vivencial alvejado por todos os lados pelos que oferecem guloseimas "científicas"de todos os tipos... tudo isto porque estão a fim de fazer um coffee- break (que este ano não teve; foi broken-coffee) Na verdade, este ano, o que se notava ao se olhar a longa distância a tal passarela não era a entropia dos psiquiatras, mas das sacolas numa disputa frenética, chocando-se e separando-se; eram sacolas de propaganda, com duas pernas e uma cabecinha. Vocês notaram como tem anualmente aumentado o espaço volumétrico das sacolas, que nos são entregues quase vazias! A manter-se este ritmo, em poucos anos as sacolas do Congresso de Psiquiatria serão passíveis de conter a totalidade do homem que as sustenta.
João Paulo Consentino Solano
Telefones: 268-8338 (res.); 9128-5543
815-6196/fax 867-9824 (cons.)
Denise Razzouk e Giovanni Torello
Data da última modificação:23/08/00
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