Psicanálise em Debate:
É com grande satisfação que abrimos esta coluna. Seguindo a
sugestão de nosso editor, Giovanni Torello, mensalmente aqui estaremos utilizando o
referencial psicanalítico para a compreensão de fatos clínicos e culturais. Esperamos
manter um diálogo aberto com os leitores, através do nosso e-mail, pelo qual poderão
mandar comentários, sugestões, etc.
Este mês a coluna consta de uma resenha e de um comentário sobre uma matéria saída no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO. |
Calcado em cima da opinião de alguns poucos terapeutas alemães e suíços, e usando o recém-publicado livro WHY FREUD WAS WRONG, de um inglês Richard Webster, o artigo mostra sua parcialidade e injustiça ao pinçar episódios da conhecidíssima biografia de Freud para apresentá-los de forma escandalosa e distorcida, bem como por não ouvir a outra parte interessada, ou seja, todo o grande contingente que não concorda as bobagens ali assacadas.
A meu ver, isso tem sua razão de ser. A situação da psicanálise na Alemanha é muito específica. Com a ascensão do nazismo, a psicanálise foi desbaratada, seus praticantes forçados a emigrar ou a sofrer um enquadramento ideológico exercido pelo Göring-Institute. Passada a guerra, a psicanálise foi reinstalada, sofrendo ainda hoje grandes dificuldades internas e externas, de fácil compreensão.
Como é sabido, um dos pressupostos da psicanálise é a existência de lembranças e idéias reprimidas e censuradas, sendo a terapêutica uma tentativa de resgatá-las, trazendo-as à consciência, reintegrando-as no contexto da vida psíquica. Esta tarefa enfrenta consideráveis resistências, que pretendem manter o "status quo".
Se isso é verdadeiro universalmente, no caso da Alemanha tal situação recebe um reforço extra, pois frente a culpa e a vergonha decorrentes do passado nazista, há um complô de silêncio, uma tentativa de apagar e negar tal passado, um esforço para manter a repressão e a negação, posturas que impossibilitam a elaboração do luto e da culpa.
Poucos têm a coragem do prefeito de Hamburgo, von Dohnanyi, que em 1985, ao mencionar os dilemas vividos pela identidade alemã em conflito com a necessidade de enfrentar seu passado, disse; "Todo aquele que diz o nosso Bach e o nosso Beethoven e... eu teria de acrescentar Goethe... precisa dizer também o nosso Hitler".
Assim sendo, a psicanálise é malvista e malquista pela sociedade alemã, como pode ser comprovado por quem se der ao trabalho de acessar o site da importante revista psicanalítica AMERICAN IMAGO (http://www.press.jhu.edu/demo/american_imago/), cujo número 52:3 (outono 1995) aborda o tema "Psicanálise e Poder", sendo a maioria dos artigos dedicada ao problema "Psicanálise/Alemanha".
Se, por um lado, é necessário denunciar este artigo como inverídico e injusto, configurando-se como um trabalho de desinformação do público, com fortes determinantes de origem política, nem por isso se deseja alimentar uma hagiografia da figura de Freud, atitude tão perniciosa e equivocada quanto sua demonização. Muito menos queremos negar os problemas que a psicanálise atravessa. Eles existem e são muitos, mas não são os que ali estão descritos.
De certa forma, o artigo, como um todo, mais parece ser uma típica reação projetiva, na qual são Freud e a psicanálise os que devem se envergonhar de seus feitos, e não o nazismo.
Imaginação Erótica - Mona Lisa tem sobrancelhas?
"...dois rapazes pubescentes são entusiásticos adeptos da felação. Cada um, durante o desempenho desse ato, está eroticamente excitado em nível consciente. A sensação de um pênis ereto na boca é sensualmente prazerosa para cada rapaz, e eles ressoam com memórias/fantasias conscientes-pré-conscientes-inconscientes de prazeres orais do nascimento em diante (alguns tentam usar rótulos clinicamente descuidados como "moralidade"). Cada rapaz acredita em uma dinâmica bem conhecida de comportamento homossexual - que seu senso de existência, de integridade, de si mesmo é realçado pelo sêmen que está prestes a ingerir. Mas um desses rapazes está a caminho de tornar-se um cabeleireiro efeminado, homossexual, em Los Angeles, ao passo que o outro se transformará em um guerreiro/caçador másculo, heterossexual, na Nova Guiné".
Esta é uma mostra da forma instigante que Stoller usa neste seu excelente OBSERVANDO A IMAGINAÇÃO ERÓTICA (Imago Editora 1998), onde reúne ensaios psicanalíticos sobre a "imaginação erótica", tendo como pano de fundo reflexões sobre as vicissitudes atuais que sofre a psicanálise.
Stoller aborda a "imaginação erótica" em claros e acessíveis artigos sobre os usos da pornografia, obscenidade e estética, travestismo em mulheres, homossexualidade e o curioso "Página Central", onde é examinado o erotismo de uma mulher que posa nua para revistas masculinas. Terá ela, que vai acalentar as fantasias masturbatórias de milhões de homens, pleno uso de sua sexualidade ou é uma frígida histérica, confusa quanto a própria identidade, vivendo um simulacro da feminilidade?
Com estes artigos, Stoller retoma um tema no qual ficou famoso - as questões ligadas à identidade de gênero sexual, às caracterizações do masculino e feminino. Tendo como pano de fundo as chamadas "perversões" (incluindo aí uma interessante defesa desta denominação atualmente abolida e tida como politicamente incorreta), mostra como a hostilidade (agressividade) joga um papel importante em toda e qualquer excitação erótica: em toda fantasia sexual é possível encontrar, mais ou menos disfarçado, o desejo de ferir (humilhar) o objeto amoroso.
Desta forma, Stoller mostra que existe uma continuidade entre a fantasia perversa e a dita "normal", para concluir, como Freud já o tinha feito antes, que a sexualidade humana não é "natural". Evidentemente sem negar seus aspectos biológicos, a sexualidade humana se afasta da Natureza para ser regida por outros princípios, aqueles advindos da Cultura. A excitação sexual e o erotismo humanos não são produtos exclusivos da biologia, mas construções complexas decorrentes de intrincados roteiros de fantasias e desejos inconscientes, regidos pela representação e significação simbólicas.
Entre os artigos, chama a atenção o muito interessante "Teorias das Origens da Homossexualidade Masculina: Uma Visão Transcultural", onde Stoller estuda o comportamento sexual do povo sâmbia de Nova Guiné, ao qual o trecho citado acima faz referência. Neste artigo Stoller rebate a atual moda que valoriza as teorias cognitivas e comportamentais behavioristas, teorias que ignoram a descoberta freudiana do Inconsciente, não dão o devido peso aos impactos da cultura na formação de padrões de comportamento, centradas que estão apenas nos aspectos conscientes dos processos da aprendizagem e condicionamento. Teorias que, como diz Etchegoyen, estão preocupadas com o "resultado", enquanto nós analistas - estamos mais interessados em entender as "intenções".
O pano de fundo do livro é uma rica, bem humorada, humilde e crítica reflexão sobre a psicanálise, feita por alguém que a conhece e ama. "Como a psicanálise é meu lar, sinto-me livre para não tratá-la com polidez", diz Stoller com toda a propriedade.
Embora esta seja uma postura que permeia o livro todo, fica mais explícita nos dois últimos artigos, "Avaliando a terapia de Insight" e "Dialética Psiquiátrica Mente-Cérebro, ou A Mona Lisa Não Tem Sobrancelhas".
Nestes movimentos pendulares, dialéticos, próprios do conhecimento humano, vivemos um momento onde a "mente" cede espaço para o "cérebro". Acuada pela exigência de cientificidade, pelas terapias cognitivo-comportamentais, pelos avanços da farmacologia e da neuro-ciência, a psicanálise parece fora de moda. Os analistas, numa "identificação com o agressor", parecem querer provar que a psicanálise é uma "ciência" e passam a escrever num jargão incompreensível. Em "Pesquisa Psicanalítica: As Regras do Jogo", Stoller com ácida ironia critica a forma como os trabalhos psicanalíticos são escritos para parecerem "científicos". Frente a estes impasses, ele propõe, no artigo "Uma Mulher Homossexual", uma forma simples e clara onde a experiência psicanalítica pode ser registrada sem impostura.
Stoller nos lembra que o campo da psicanálise é outro que o das ciências exatas. Nossos conhecimentos não são aferíveis estatisticamente, nossos procedimentos não são mensuráveis, não podemos querer fazer "pesquisas" no modelo "científico" mas mesmo assim, apesar de tudo, é inegável que temos um tipo de saber que dá o acesso único e inestimável a uma verdade que sem ele ficaria para sempre inalcansável.
Ah, sim. Mona Lisa não tem sobrancelhas. Stoller usa este fato para ilustrar a capacidade de observação característica de um psicanalista, que está habilitado para ver o que a maioria das pessoas não percebe.
Denise Razzouk e Giovanni Torello
Data da última modificação:23/08/00
http://www.priory.com/psych/stoller.htm