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TERAPIA FAMILIAR: CAMINHOS E DESCAMINHOS PSICANALÍTICOS E SISTÊMICOS
(Trabalho apresentado no Encontro Internacional de Família e Psicanálise Novas tendências clínicas Organizado pela Universidade São Marcos e pela Societé de Thérapie Familiale de lIle de France, Paris)
C.Guillermo Bigliani - Psiquiatra e Psicanalista Argentino radicado no Brasil
Mostrarei resumidamente nestas linhas como o caminho traçado pela psicanálise em suas descobertas originais motivou a aplicação tardia desta teoria à técnica da terapia familiar. Estas limitações não atingiram só a psicanálise individual clássica, também atingiram outras linhas de psicoterapias individuais na resolução dos problemas clínicos.
Comentarei também sobre como a aplicação acrítica de postulados da doutrina sistêmica colaboraram para o empobrecimiento de sua aplicação clínica. Comentarei ainda alguns mal-entendidos teóricos que motivaram desencontros entre a teoria psicanalítica e a teoria sistêmica, mostrando porque julgo que ambas teorias se complementam para a compreensão da patologia e da terapia familiar, e, finalmente, como o emprego de metáforas pode ser usado, informado por uma compreensão psicanalítica, para fins terapeuticos.
Freud acreditava que "a psicologia individual é desde o início uma psicologia social" e aplicou esta idéia em sua terapia individual, mas não conseguiu desenhar uma técnica que instrumentalizasse os corolários dessa noção com uma finalidade terapeutica em grupos sociais mais amplos, tais como familias ou instituções.
No início de seu percurso teórico-clínico, Freud como hipnólogo, sugeria a seus pacientes, colocados en transe hipnótico, ordens pos-hipnóticas visando a supressão dos sintomas que apresentavan. Visitando alguns pesquisadores em hipnose, notadamente Bernheim, mestre da escola de Nancy, Freud se defrontou com uma experiência que foi mutativa em seu trabalho clínico.
Bernheim hipnotizava os pacientes sugerindo-lhes que ao acordar batessem em alguém. Ao acordar, os pacientes batiam no enfermeiro. Ao serem interrogados sobre as razões que motivaram este tipo de conduta, respondiam, por exemplo, que o enfermeiro tinha ofendido a mãe deles.(Isto serviu a Freud mais tarde para postular como o sistema pré-consciente/consciente era um sistema de desconhecimento).
Aparentemente, a ordem pos-hipnótica era inconsciente para o paciente, mas, se estes eram interrogados insistentemente, essa ordem, supostamente inconsciente, tornava-se consciente: o paciente recordava, sem ser hipnotizado novamente, aquilo que tinha acontecido durante a hipnose.
Freud trabalhava nessa época com a idéia de que os sintomas eram produto de lembranças inconscientes de traumas que deviam ser trazidos à consciência sob hipnose para sua catarse e consequente anulação. Se o experimento de Bernheim era verdadeiro, não tinha sentido hipnotizar os paciente para aceder às lembranças traumáticas inconscientes. Bastava insistir. Assim Freud abandona a hipnose.
Como os tratamentos efetuados com este método provaram não ser eficientes ou duradouros, Freud suspeitou que não era qualquer tipo de trauma que causava efeitos patológicos. Supôs então que para que isso ocorresse era necessário a existência de traumas anteriores e que estes deveriam ter um conteúdo sexual.
A teoria sexual traumática, assim como o método da associação livre, permitiram importantíssimos avanços à teoria, entre outros a interpretação científica dos sonhos. A teoria sexual traumática é mais tarde abandonada, sublinhando-se o efeito traumático das fantasias, da sexualidade infantil e das pulsões, assim como a região teórica do Complexo do Edipo.
À procura da explicação dos mecanismos da psicose e da melancolia, Freud encontra sua origem numa época ainda mais remota no tempo.
Em todo este percurso, que permitiu um desenvolvimento teórico fabuloso, vemos como o momento causal da patologia se desloca para o passado do sujeito e para a fantasia. Desenvolvimentos teóricos posteriores, também de grande importância, centram a origem da patologia nos primeiros meses da vida. Mas, voltando a Freud, vemos como não consegue sair da armadilha de sua teoría intrapsíquica nem da técnica unipessoal correspondente a tal teoria, apesar incluir a realidade externa em suas teorizações, como o faz ao estudar a sociedade em "O Mal-estar na Cultura", ao continuar acreditando nas neuroses atuais, ou ainda ao incluí-la em suas séries complementares.
Pressionados pelo peso da teorização freudiana, levou muito tempo para os analistas abandonarem a fidelidade absoluta a algumas das metáforas mais glamurosas sintetizadoras de sua teoría e de sua técnica como é, por exemplo, a que Freud usa tendo como modelo a afirmação de Leonardo da Vinci ao classificar as artes plásticas. Dizia Leonardo que as artes plásticas diferenciavam-se entre aquelas que são a porre, ou seja, aquelas que põem, que acrescentam material, como na pintura; e aquelas que são a levare, como a escultura que retira material de un bloco de mármore. Freud identifica a psicanálise com esta última técnica, não mais colocando material na psique do paciente, como o fazía com suas ordens pos-hipnóticas iniciais, senão extraindo dela os materiais que evitavam que a psique se revelasse em toda sua plenitude através de um trabalho individual e exclusivo com o mundo de fantasia do paciente.
Ao abandonar, como abandonou, a teoría do trauma sexual real pela pulsão e pela fantasia, acredito que Freud se afastou exageradamente das determinações reais atuais e assim, do caminho que podería reconduzí-lo a hierarquizar as determinações reais externas, especialmente aquelas do grupo familiar, que só serão desenvolvidas várias décadas depois.
Nesse percurso, merece especial atenção relembrar o artigo de um psicanalista, Don D.Jackson, um dos pais da terapia de familia, onde retoma o romance Lolita de Nabokov, cujo sub-título "Lolita não tem complexo de Edipo senão de Eletra", e reatualiza, mais além da determinação pelo intra-psíquico, o campo do inter-pessoal sexual e familiar atual, abandonado por Freud no começo de sua obra.
Acredito que o salto freudiano do intra-psíquico ao social foi reforçado por uma resistência a ter de enfrentar novamente as aporias técnicas do trauma sexual real na familia, tal como o vislumbro em seus casos iniciais, assim como o dificil manejo da contratransferência nestes casos.
Diz Don D. Jackson, en 1964, referindo-se às reações despertadas pela aparição da nova técnica no mundo dos psicoterapeutas: "Alguns têm aguardado no backstage do cenário psicoterapeutico e hoje aceitam com entusiasmo a terapia familiar, como um marinheiro que descobre uma loira numa ilha deserta. Outros especialistas em psicanálise ficam desgostosos com este filho ilegítimo e anseiam expulsá-lo de casa".
Jackson diz também que a terapia familiar foi un acidente. Na verdade, foi um acidente que aconteceu en vários lugares ao mesmo tempo. Nos Estados Unidos pode-se atribuir a essa estranha aliança entre a psiquiatria, as ciências sociais e a psicanálise que caracterizou seu mundo psi. Na Argentina, Pichon Riviere encontrava também na psicanálise e na teoria da comunicação os fundamentos para sua terapia familiar das psicoses.
Tentou-se também compreender as famílias desde a psicopatologia psicanalítica clássica, mas não se contava na época com uma linguagem para dar conta dos fenômenos da familia em termos diferentes do unipessoal intra-psíquico. Alguns analistas, como Ackerman, conseguiram avançar pegando emprestado a teoria behaviorista dos "rolles" e formulando hipóteses interessantes sobre o funcionamento do agressor, da vítima ou bode expiatório e do curandeiro nas familias.
Foi Bateson quem conseguiu desenhar uma forma de pensar nova, em termos de interação, abandonando a compreensão unipessoal, e criando novas classificações orientadas por suas pesquisas antropológicas, que o levaram a tentar explicar o fenômeno do sistema esquizofrênico, passando pelo estudo de coisas tão interessantes como a comunicação nos sistemas dos macacos no zoológico de São Francisco; o sistema configurado pelo cego e seu cão e aquele constituído pelo ventrílogo e seu boneco.
Finalmente, a teoría geral dos sistemas veio a oferecer um substituto a uma forma de pensar a determinação intra-psíquica, por uma determinação circular e os consequentes mecanismos de retro-alimentação.
Outro elemento que caracterizava o funcionamento dos sistemas era a homeostase, os sistemas tendian a mantenerse estáveis. Assim podia-se reconhecer uma poderosa nova determinação para as resistências à mudança, que Freud tinha procurado exclusivamente dentro do individuo: para manter a sua homeostase, o sistema forçava seus elementos a manter-se em suas respectivas funções, reforçando assim o lugar de cada um e, notadamente, o do louco.
O conceito de calibração, também desenvolvido por Bateson, que descreve mudanças no patamar da homeostase, foi de grande importância para pensar outros fenômenos da família patológica.
Mas acredito que com a noção de equifinalidade, uma propriedade dos sistemas abertos que indica que a qualidade e as caraterísticas de um sistema são determinadas pela natureza das relações entre seus elementos e não por suas condições iniciais, serviu para atrasar os progresos em terapías familiares em vez de estimular seus avanços.
Segundo esta idéia da teoria geral dos sistemas, ao não importar as condições iniciais do sistema, o conhecimento da história do grupo familiar torna-se desnecessária assim como as teorizações sobre o passado. Qualquer estruturação do passado pode levar às condições presentes do grupo, consequentemente era desnecessário conhecer o passado, a história, as condições iniciais.
Acredito que quando os terapeutas destas linhas, que chamarei a-históricas, criticam a chamada "cegueira paradigmática", referindo-se com razão autocrítica ao esquecimento das determinações biológicas ou sociais, esquecem do paradígma do inconsciente, que inclui a história familiar, a história das identificações, os objetos transgeracionais, os segredos familiares. Os terapeutas familiares que assumiram estas postulações com entusiasmo desmedido acredito que empobreceram suas posibilidades técnicas e seus resultados terapeuticos, tornando-se mecânicos e repetitivos. Outros, que postulam agir a-histórica e espontaneamente nas familias, alimentan sua suposta intuição e criatividade clínica com longos anos de estudos psicanalíticos, articulando conceitos dessa disciplina convenientemente passados pela tinturaria.
Porém devo reconhecer neles algumas das páginas mais divertidas de que se tem notícias na história das psicoterapias. Muitas delas com profunda sabedoria em suas críticas ao mal emprego da psicanálise, tais como as de Jay Haley, pena que generalizadas onipotentemente.
João e Maria me consultam en novembro do ano pasado. A situação tem-se tornado insuportável e esta é a última tentativa que fazem antes da separação, seguramente inevitável. Agridem-se, até fisicamente. Ela grita descontroladamente, loucamente. Ele se afasta friamente, cruelmente. Eu penso, com minha velha mania classificatória simplista: uma histérica com seu obscesivo. O sistema está desequilibrando-se e vêem procurar um terceiro para dar uma calibrada, para manter a homeostase.
Ela diz: Ele não fica satisfeito com nada do que eu faço, todo o tempo me recrimina, dizendo que não me comporto como devería, que não cuido das crianças como devería, além do que as fotos dela estão em toda parte, suas roupas ainda estão ali.
Roupas de quem? - pergunto com santa ingenuidade.
Ela responde : Dela, da finada. Ele é viuvo faz três anos. Acompanhou sua ex-esposa por un longo e sofrido proceso perdido numa luta desigual contra um desses cânceres que não perdoam. Depois de um tempo uma amiga nos apresentou.
A relação sempre foi dificil. Ela vinha de um matrimônio desfeito, mas seu pai - político rico e de renome - sempre a tinha ajudado. Diz ela: Ele sabia de antemão a valorização dos terrenos, por estar informado sobre lei de zoneamento, essas coisas. Dinheiro sempre sobrou em casa. Sempre não, na verdade quando conheci João papai tinha acabado de perder tudo nessa maldita campanha. Bem que minha mãe falou... Mas minha amiga brincava dizendo que eu tinha a sorte grande, pois nesse momento vim a conhecer João. Os dois me dão mais detalhes.
Pergunto-lhes se se importam que lhes conte um velho filme espanhol. Se chama "O homem não pode estar só". Não é de Saura, é de outro cara, não lembro o nome. Mas tenho certeza que é espanhol. Eles estão interessados.
Conto para eles o filme. O personagem sai em lua-de-mel, há um acidente no qual morre a mulher. Era ele quem dirigia o carro. Não lhe aconteceu nada. Segue trabalhando, toda noite cuida das coisas da falecida mulher. Dá para ver que sente muita saudade. Tanto que manda fazer na Dinamarca una boneca inflável, dessas que mandando a foto vem igualzinha.
Uma noite, enquanto escuta música na sala com a boneca, o filho de uma prostituta que vive na vizinhança quebra o vidraça da janela com uma bola e invade a idílica privacidade do homem. Por alguma razão que não lembro, os três o filho da prostituta, a prostituta e seu homem acabam, através da chantagem, instalando-se na casa do viúvo. A convivência torna-se insuportável, o viúvo se vê acuado pelas gozações. Esconde sua boneca no sotão, visitando-a somente na calada da noite, até ser pego por seus indesejado hóspedes, e, num surto de fúria, passa por cima dos intrusos com seu BMW, pega sua boneca e agasalhando-a com as melhores peles de sua falecida mulher, entra na festa da companhia na que trabalha.
Eu tinha terminado a história do filme. Maria sorriu e disse que é exatamente isso o que aconteceu com João, que ele quería que ela fosse uma boneca inflável, cópia de sua primeira mulher, e ela não ia ser nada disso não.
Surpreendido com sua fala, digo que ao contar o filme não tinha pensado nisso e sim pensado nela.
Como assim pergunta ela.
Respondo Bom, eu tinha pensado que, de algum jeito, quando você conheceu João seu pai, como pai poderoso tinha morrido, tinha ficado pobre. Pensei que você tentou que João fosse a boneca inflável de teu pai, que ele não se comportava como você queria, era como a prostituta que ridicularizava teus desejos de que ele fosse essa boneca, e que - por isso - talvez você tratou de matá-lo.
Falei que deveríamos pensar melhor tudo isso e os convoquei para outra sessão. Eles saíram discutindo o filme.
Neste caso, e em outros como este, tenho me valido de metáforas de uma forma que talvez alguns colegas analistas anatemizariam bravamente, mas que tem eficiência terapeutica, como com este casal devorado por lutos patológicos cruzados que geravam um permanente mal-entendido entre o desejo de reencontro do objeto perdido e a nova realidade que violentamente se lhes impunha e pretendiam negar.
Ao intervir aqui com esta metáfora faço uso da noção de história psicanalítica, na metáfora também está incluída a concepção psicanalítica de luto, o que presupõe toda a teoria psicanalítica da identificação, o que por sua vez - implica em quase toda a teoría psicanalitica da constituição do sujeito.
Do ponto de vista técnico, estou aparentemente modificando a técnica psicanalítica clássica, já que em vez de tirar coisas através da associação livre estaría colocando coisas na mente dos pacientes. Mas sempre colocamos coisas, uma interpretação é colocar coisas, só que uma interpretação adequada deve provocar sempre um impacto afetivo destinado a atraveçar a barreira defensiva da inteletualização e estimular a produção de novas asociações.
Jackson disse que "...os problemas aparentemente antitéticos entre a psicanálise (como teoría psicológica mais individual) e a teoria da interação familiar são mais aparentes que reais, sendo mais fomentados por uma diferença técnica que por uma verdadeira incompatibilidade das teorias".
Concordo com ele e acredito que devemos aproveitar todas as teorías disponíveis para melhorar nossas possibilidades de eficiência terapeutica.
Denise Razzouk e Giovanni Torello
Data da última modificação:23/08/00
http://www.priory.com/psych/links.htm