Transtornos Alimentares e Cultura: Notas sobre a Oitava Conferência em Transtornos Alimentares - New York, 1998
*Psicóloga, Membro do Programa de Transtornos Alimentares do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM), em treinamento para pesquisa no Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), EUA. **Médica Psiquiatra, Mestre em Psiquiatria, Coordenadora do Programa de Transtornos Alimentares do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM).
Com a apresentação "The ideal of the Feminine Beauty in the Western Art", Gerald Russell abriu a Oitava Conferência Internacional em Transtornos Alimentares, realizada em abril deste ano, em Nova York. Conduziu a platéia de mais de 600 profissionais por uma jornada ao longo do tempo e da história da arte para demonstrar que os padrões de beleza feminina, conforme refletidos na produção artística ocidental, variaram consideravelmente ao longo dos séculos. Baseando-se nas idéias de Camille Paglia, levantou ainda a hipótese de que o culto à magreza nos tempos atuais denota, paradoxalmente, rejeição à beleza feminina.
Assim, com esta abordagem interdisciplinar, foi dada a tônica da Oitava Conferência. Como disse Preston Zucker em suas palavras de encerramento, o campo dos transtornos alimentares já está suficientemente estabelecido: tem uma identidade própria, conta com uma Academia para Transtornos Alimentares e tem duas conferências internacionais, uma em Londres e outra em Nova York, que acontecem em anos alternados e são eventos de prestígio mundial. Tendo alcançado este status, os organizadores da conferência de 98 se propuseram a um novo desafio, o de buscar o diálogo transcultural e transdisciplinar.
Os estudos transculturais são importantes na medida em que, atualmente, já está evidente que os transtornos alimentares são encontrados em todo o globo. O congresso teve, então, sua primeira plenária dedicada a este tema, que pretendemos enfocar neste artigo. A necessidade de troca com outras disciplinas refletiu-se, por sua vez, na organização de plenárias sobre obesidade e trauma, temas que apresentam uma importante interface com a área de transtornos alimentares, e também na participação de estudiosos das ciências sociais, da neuro-biologia e da genética.
Apresentaremos, de forma resumida e informal, os principais aspectos discutidos pelos conferencistas nesta primeira plenária, entitulada "Culture, Ethnicity and Eating Disorders", com o objetivo de proporcionar um panorama atualizado sobre o tema. Para introduzir o assunto no entanto, abordaremos inicialmente dados epidemiológicos apresentados durante a segunda plenária do congresso, que levantam aspectos importantes para a discussão dos aspectos culturais dos transtornos alimentares.
Epidemiologia dos Transtornos Alimentares Hans Hoek , em sua palestra "Epidemiological Issues of Risk and Vulnerability", revisou vários estudos europeus sobre a incidência de anorexia nervosa, realizados com base em registros de caso, e mostrou que a incidência deste transtorno se manteve estável em torno dos 5/100.000 desde 1970 até 1996, embora fosse mais baixa antes deste período. Citou estudos históricos, como o de Lucas e colaboradores (1991), para concluir, então, que não se deve considerar a anorexia nervosa como uma patologia moderna.Com relação à bulimia nervosa, também de acordo com registros de caso, os dados mostram que a sua incidência esteve estável em torno dos 6/100.000 nos anos 80 e 90. Embora não houvesse uma categoria diagnóstica para bulimia antes de 1980, Hoek mencionou a existência de pacientes com histórias anteriores a essa década e levantou a hipótese de que, possivelmente, nem mesmo a bulimia seja tão moderna assim.
Hoek descreveu ainda estudos que investigaram a associação entre urbanização e aspectos culturais com transtornos alimentares. No primeiro caso, referiu-se ao estudo em que comparou as taxas de incidência de transtornos alimentares em cidades e áreas rurais da Holanda (Hoek e col., 1995), cujos achados vêm sendo, segundo o próprio Hoek, replicados por um estudo atual. Estas pesquisas mostram que a incidência de anorexia nervosa é relativamente estável e independente do nível de urbanização da região, enquanto a bulimia nervosa tem incidência diretamente proporcional ao grau de urbanização, chegando a ser aproximadamente 6 vezes maior nas cidades do que nas áreas rurais.
Para estudar o impacto da cultura, pesquisou-se a incidência de transtornos alimentares em Curaçao, onde 95% da população é negra ou miscigenada e onde não vigora um ideal de beleza baseado na magreza (Hoek e col., 1998). O valor médio do Índice de Massa Corporal (IMC - kg/m²) dos homens em Curaçao é ligeiramente menor que o IMC da população masculina de raça negra ou branca nos Estados Unidos. Já em relação à população feminina, o IMC das mulheres em Curaçao é semelhante ao das mulheres negras americanas, e maior do que as mulheres brancas americanas (28,3; 28.2; 26.0 respectivamente). Diante destes fatos, não se esperava encontrar casos de anorexia nervosa nesta população. Contudo, os resultados foram contrários às expectativas. Encontrou-se um número significativo de casos de anorexia nervosa, com uma taxa de incidência semelhante à encontrada em países ocidentais. Por outro lado, não foi encontrado nenhum registro de bulimia nervosa neste país. Baseando-se nestes achados, Hoek concluiu que a anorexia nervosa não é uma síndrome ligada à cultura ("culture-bound syndrome"), enquanto a bulimia talvez seja. Colocou também que os fatores culturais são possivelmente mais importantes como fatores mantenedores dos transtornos alimentares do que como fatores etiológicos.
Para encerrar, vale a pena comentar que a sessão científica dedicada à epidemiologia e estudos transculturais foi composta de 12 apresentações sobre transtornos alimentares em diversos países e culturas, como Grécia, Israel, grupos judaicos ultraortodoxos e hassídicos, África do Sul, Japão, China, Singapura, Buenos Aires e Brasil. O Brasil foi representado por Maria Angélica Nunes que apresentou dados de sua pesquisa realizada na cidade de Porto Alegre (RS) : "Prevalence of Eating Disorder Symptoms Among 513 Women Between 12 and 29 Years of Age". Torna-se evidente que os transtornos alimentares não estão mais restritos às elites dos países de primeiro mundo, e talvez nunca tenham sido exclusividade das sociedades ocidentais desenvolvidas, como já se chegou a pensar. Os dados epidemiológicos também revelam que é errônea a idéia de que os transtornos alimentares atingiram dimensões epidêmicas. Estes são, ainda hoje, quadros relativamente raros.
Cultura, Etnia e Transtornos Alimentares A plenária "Culture, Ethnicity and Eating Disorders" contou com a participação de Melanie Katzman, professora de psicologia do Instituto de Psiquiatria de Londres e membro do corpo docente da Universidade Cornell em Nova York; Pat Caplan, diretora e professora de antropologia social da Escola de Estudos Avançados da Universidade de Londres; Sing Lee, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade Chinesa de Hong Kong e membro do corpo docente do Departamento de Medicina Social da Universidade de Harvard; e Janet Treasure, professora do Instituto de Psiquiatria de Londres e chefe do Programa de Transtornos Alimentares do Maudsley Hospital.Estes pesquisadores discutiram, a partir de várias perspectivas, o papel que os aspectos sócio-culturais têm na etiologia e manutenção dos transtornos alimentares, assim como os significados sócio-culturais que estes transtornos adquirem nas sociedades atuais.
Diante do acúmulo de evidências que indicam a globalização dos transtornos alimentares, propuseram-se a apresentar uma revisão crítica dos principais pontos do debate transcultural: ocidentalização e síndromes ligadas à cultura ocidental ("culture-bound syndromes, bound to the west"), preocupação com gordura, influências da mídia, diferenças de gênero, problemas metodológicos e diferenças no acesso ao tratamento. Segundo Katzman, alguns destes conceitos vêm sendo utilizados como explicações definitivas para os transtornos alimentares, quando deveriam ser pontos de partida para uma análise mais profunda da interação entre indivíduo, corpo, psicopatologia e sociedade.
Ocidentalização x Modernização
A idéia de que os transtornos alimentares são síndromes ligadas à cultura , mais especificamente à cultura ocidental, vem sendo um dos pontos centrais da discussão sobre os aspectos sócio-culturais destes transtornos. Tal concepção baseava-se em dados mostrando um aumento da incidência destes quadros nas últimas décadas e sua maior prevalência nas sociedades ocidentais de primeiro mundo. O ideal de magreza vigente nestas sociedades era tido, portanto, como um dos fatores culturais que contribuiriam para o aparecimento destes transtornos.
Melanie Katzman ressaltou algumas implicações problemáticas contidas nesta proposta, como por exemplo o pressuposto de que a preocupação com a dieta e magreza são os valores culturais primários influenciando o surgimento dos transtornos alimentares, em vez de proporcionar uma análise cuidadosa sobre o que de fato compõe a cultura ocidental. Casos de transtorno alimentar na ausência de uma preocupação com o peso permanecem sem compreensão possível dentro deste referencial. Além disso, muitas vezes utiliza-se o termo cultura de modo simplista, como se fosse sinônimo de fronteiras geográficas e não da construção de significados ou mecanismos sociais de controle do comportamento. Por último, dados epidemiológicos revelando a presença dos transtornos alimentares em diversas sociedades tornam necessária uma revisão desta concepção.
Katzman procurou enfatizar que, na verdade, preocupações com a gordura são apenas uma pequena parcela dos problemas a serem examinados. Sugeriu que deixemos de produzir trabalhos repetitivos, baseados em instrumentos que avaliam comportamentos voltados à dieta, pressão para a magreza, etc., e busquemos inspiração nas ciências sociais. Usou o exemplo da sociologia, que já nos permite reconhecer os diversos elementos que compõem o processo de ocidentalização: transformações ligadas à industrialização e urbanização, a organização da vida privada, mercados globais e a ameaça aos mercados nacionais, a liberdade da mulher, a importância do indivíduo como um produto competitivo, o desaparecimento de idiomas culturais tradicionais para a expressão do sofrimento e a medicalização de qualquer forma de protesto.
Sing Lee, por sua vez, também propôs que deixemos de considerar os transtornos alimentares como um fenômeno ocidental. Do seu ponto de vista, que se acha de acordo com as colocações de Katzman, devemos procurar entender estes transtornos em relação à modernização, e não à ocidentalização. Ao examinar um mapa do mundo no qual os países estão classificados pelo PIB per capita, demonstrou que, nas áreas onde o PIB é alto, está documentada a presença de transtornos alimentares. Segundo Lee, a modernização é o fenômeno que nos permite melhor entender o aparecimento destes transtornos em quase todos os países do leste asiático e nas cidades da costa chinesa, onde eram considerados inexistentes há 10 anos atrás, assim como sua ausência nas cidades do oeste chinês, que se mantém até hoje como uma região essencialmente rural.
Lee comenta que a modernização, até hoje, tem promovido uma preocupação coletiva com a gordura, o que é um fenômeno relativamente recente na Ásia. Contudo, ele enfatiza a especificidade deste processo, que está sempre vinculado ao contexto local. A modernização da Ásia oriental, por exemplo, se refere a um rápido crescimento econômico nas últimas duas ou três décadas, diferentemente do processo de modernização ocidental, que se deu de modo mais lento. Além disso, o crescimento econômico na Ásia não foi acompanhado de um processo paralelo de liberalização política, e a persistência de um conservadorismo político implica na manutenção de valores patriarcais e numa menor proteção legal para as mulheres. Esta especificidade se reflete no contraste e conflitos, por exemplo, entre uma mãe de 50 anos de idade, com valores originados na era comunista, e sua filha que passa a controlar o peso depois de não ser aceita na melhor universidade chinesa. A modernização asiática, portanto, tem um impacto específico nas perturbações alimentares, que podem ter um curso diferente daquele encontrado no ocidente.
De fato, os problemas alimentares na Ásia têm algumas características específicas. Lee apontou algumas delas: relatou que o IMC médio de jovens chinesas de IIº grau é apenas 18.7 kg/m², enquanto há 20 anos atrás era 19.5 kg/m². Segundo os padrões ocidentais, este valores seriam significativos de baixo peso. Ainda assim, a maioria destas jovens desejam ser mais magras, embora dietas constantes e jogging ainda sejam mais raros na China do que no ocidente. Apesar da prevalência de transtornos alimentares estar aumentando, são ainda doenças raras, o que pode estar relacionado ao desconhecimento por parte dos médicos ou ao pouco acesso ao tratamento.
A Modernização e a Mídia
A mídia sempre teve um papel de destaque nos estudos sobre transtornos alimentares, já que propaga e divulga os ideais de corpo e beleza vigentes. Contudo, como Katzman bem colocou, esta é uma compreensão bastante simplista e superficial, talvez até acusatória, da função dos meios de comunicação. Segundo Katzman, é preciso atentar para o fato de que a mídia e a tecnologia das informações permitem a globalização, processo este que dilue as fronteiras nacionais. Há uma ameaça à noção de identidade nacional, que pode, em si mesma, dar origem a um sentimento de confusão cultural e à busca da afirmação da identidade individual através de comportamentos patológicos.
A respeito da participação da mídia, Sing Lee também comentou que seu poder não pode ser isolado do contexto social em que as experiências com a comida estão imersas. Juntamente com as mensagens voltadas para o corpo são transmitidas mensagens sobre papéis e expectativas sociais em relação às mulheres, que revelam transformações sociais importantes da identidade feminina.
A Modernização e as mulheres
Conforme expresso acima, o processo de modernização implica em profundas transformações sociais, as quais, por sua vez, afetam diferentemente mulheres e homens. Segundo Katzman, são estas transformações, e os conflitos delas advindos, que podem contribuir para a maior prevalência de transtornos alimentares entre as mulheres. Sugere que não consideremos a questão do gênero apenas como uma mera diferença cromossômica. A partir de uma perspectiva feminista, Katzman propôs que se considere as diferenças entre homens e mulheres no acesso ao poder, assim como distintas oportunidades de auto-afirmação, para que se possa entender as diferentes taxas de prevalência. Propôs ainda que aproveitemos o laboratório vivo que temos a partir da globalização para melhor compreender o impacto das mudanças sociais na identidade feminina e na relação das mulheres com o corpo.
Sing Lee também abordou o impacto específico que a modernização tem em homens e mulheres. Comentou que as mudanças de status econômico são acompanhadas de várias outras que afetam enormemente o papel social das mulheres e, por isso, o aparecimento dos transtornos alimentares nos países asiáticos são também sinais de transformações positivas, como diminuições das taxas de mortalidade infantil, aumento do nível educacional das mulheres e maior participação das mesmas no mercado de trabalho.
Necessidade de Metodologias Alternativas
Inúmeras vezes durante a primeira plenária, os pesquisadores da área de transtornos alimentares foram alertados para a necessidade de metodologias de pesquisa mais adequadas para o estudo das forças sócio-culturais. Katzman, por exemplo, sugeriu que se estabeleçam colaborações verdadeiramente interdisciplinares, que permitam o desenvolvimento de métodos adequados para a avaliação do impacto dos valores culturais, da ruptura da organização social, das transformações econômicas e da confusão cultural no indivíduo. Lee alertou para o fato de que pesquisas quantitativas são adequadas para o estudo de experiências coletivas, como a experiência da gordura, mas a apreensão das representações culturais requer metodologias qualitativas.
A apresentação de Pat Caplan foi então um exemplo de colaboração interdisciplinar para a compreensão dos transtornos alimentares. Caplan demonstrou que, a partir da perspectiva antropológica, é possível perceber que o modo como os indivíduos se relacionam com a comida e o corpo são importantes metáforas de sua identidade. Revelam a origem racial, a classe social, o sexo, etc, e são carregados de significados culturalmente construídos, que se transformam ao longo da história. Atualmente, nas sociedades afluentes, vive-se uma "civilização do apetite", em que a qualidade do que se come é mais importante do que a quantidade e a comida se tornou um importante símbolo de controle. O corpo, por sua vez, é visto como maleável, algo a ser aprimorado pelos recursos tecnológicos. Contudo, estudos comparativos revelam que estas noções nem sempre foram válidas e, mesmo hoje, encontram-se diferentes conceitos sobre alimentação e corpo em diferentes grupos étnicos e sociais.
Sing Lee também discutiu a validade da aplicação de critérios diagnósticos e instrumentos de pesquisa ocidentais em populações de outra cultura. Lembrou que inúmeras pacientes na Ásia não atribuem seus sintomas ao medo de engordar. Segundo ele, a universalização do DSM-IV pode ser restritiva já que não leva em consideração as subjetividades múltiplas, nem os diferentes idiomas para expressão do sofrimento, muito menos o fato que diferenças no padrão de peso, contexto cultural e atitudes em relação ao corpo podem conferir diversas atribuições à recusa alimentar. Consequentemente, o uso de instrumentos de pesquisa ocidentais em outras culturas pode gerar resultados distorcidos.
Tendo estes problemas em vista, Sing Lee e colaboradores desenvolveram uma nova sub-escala para o EDI, chamada de Escala de Alimentação Perturbada, para indivíduos chineses. Existem evidências preliminares, segundo ele, de que tanto pacientes típicos como aqueles que não referem medo de engordar se distinguem de voluntários saudáveis nesta escala, enquanto em sub-escalas como Desejo de Emagrecer não há uma diferença marcada entre pacientes atípicas e indivíduos saudáveis.
Acesso ao Tratamento em Diferentes Culturas
Sing Lee encerrou sua apresentação citando o problema do acesso ao tratamento. Em suma, atentou para o fato de que formas de tratamento biológicas, sociais ou psicológicas, reconhecidamente eficazes no Ocidente, não são necessariamente encontrados na China.
Janet Treasure abordou o mesmo problema de outro ponto de vista. Em sua palestra, apresentou os resultados preliminares de um estudo multicêntrico realizado em vários países da Europa sobre efetividade e custos do tratamento dos transtornos alimentares. São avaliados, entre outros elementos, a prevalência de fatores de risco em cada país, os modelos de atendimento e as características dos pacientes dos vários países europeus com o objetivo de se delinear modelos de compreensão mais amplos do que os que vigoram atualmente, e assim proporcionar a criação de serviços apoiados em evidências.
Os resultado preliminares deste estudo mostram que as características clínicas dos pacientes com transtornos alimentares não variam significativamente nos diversos países europeus. Contudo, a prevalência dos fatores de risco, as características psicossociais dos pacientes, e os modelos de atendimento têm características específicas em cada país. Estas particularidades, segundo Treasure, podem levar a dificuldades na transposição dos resultados de pesquisa de um país para a prática clínica de outro e, por isso, precisam ser consideradas.
Comentários Finais Ao final deste primeira plenária, tornou-se evidente o importante avanço da compreensão sobre os aspectos sócio-culturais para os transtornos alimentares. Conceitos que até recentemente era centrais para esta compreensão já estão, senão ultrapassados, pelo menos sendo recontextualizados. As palavras de ordem não são mais ocidentalização ou síndromes ligadas exclusivamente ao Ocidente, mas sim modernização e globalização.Restam, no entanto, algumas questões. Na medida em que a compreensão sócio-cultural dos transtornos alimentares se afasta da preocupação generalizada com o peso e passa a incorporar conceitos mais amplos como o de modernização, torna-se menos evidente a especificidade destes fenômenos culturais para estes transtornos. As transformações culturais aqui abordadas, tais como diluição de fronteiras, mercados e dialetos nacionais, conflitos gerados por novos papéis e expectativas, confusão cultural, etc, favorecem especificamente os transtornos alimentares, ou têm eles uma influência genérica nos transtornos mentais em geral?
A discussão dos aspectos sócio-culturais tem ainda negligenciado a influência deste fator em outras manifestações alteradas do comportamento alimentar, como o "comer compulsivo", em prol de uma ênfase nos sintomas alimentares voltados ao controle do peso. Já se sabe, atualmente, da importância deste comportamento não só no contexto da bulimia nervosa como também entre os transtornos não-especificados e o transtorno da compulsão alimentar periódica, o que torna premente sua inclusão dentro do panorama desta discussão.
É interessante observar que em nosso meio já detectamos a manifestação dos transtornos alimentares, antes considerados "virtuais" fora do primeiro mundo. É provável que o interesse crescente por este tema e sua divulgação pela mídia tenham mobilizado tanto a população leiga quanto os profissionais de saúde, o que se evidencia na crescente multiplicação de serviços especializados, e pelo aumento da busca por tratamento nos últimos cinco anos. Assim, talvez estejamos assistindo, também aqui no Brasil, às influências da "modernização" sobre nossa cultura e sobre a expressão dos transtornos alimentares.
Para encerrar, é preciso também enfatizar que os aspectos sócio-culturais em si mesmos não determinam isoladamente o desenvolvimento dos transtornos alimentares, embora sejam de importância fundamental. Como os dados sugerem, mesmo entre os transtornos alimentares é provável que esses aspectos exerçam diferentes níveis de influência, sendo esta possivelmente maior para a bulimia do que para a anorexia nervosa.
A etiologia destes transtornos é multifatorial e engloba predisposições biológicas, psicológicas e familiares, assim como eventos desencadeantes e precipitantes. Pode-se pensar que a cultura favorece, cria condições e fornece o veículo - talvez, como diz DiNicola (1990), forneça o "envelope cultural" - para a expressão desta convergência de fatores.
Referências
Fairburn CG, Doll HA, Hay PJ, Davies BA, OConnor ME (1998). Risk-factors for binge eating disorder: a community-based, case control study. Archives of General Psychiatry 55: 425-32
Fairburn CG, Doll HA, Davies BA, OConnor ME (1997). Risk-factors for bulimia nervosa: a community-based, case control study. Archives of General Psychiatry 54: 509-517
Hoek HW, Barteld AI, Bosveld JJ, van der Graaf, Limpens VE, Maiwald M, Spaai CJ (1995) Impact of urbanization on detection rates of eating disorders. American Journal of Psychiatry 152: 1272-1278
Hoek HW, van Harten PN, van Hoeken, Susser E (1998) Lack of relation between culture and anorexia nervosa - results of an incidence study on Curacao. New England Journal of Medicine 338: 1231-1232
Lucas AR, Beard M, OFallon WM, Kurkland L T (1991) 50 year trends in the incidence of anorexia nervosa in Rochester, Minn.: a population based study (1991) American Journal of Psychiatry 148: 917-922
Di Nicola VF (1990) Anorexia multiforme:self-starvation in historical and cultural context, part II Transcultural Psychiatric Research Review 27:245-286
.
Denise Razzouk e Giovanni Torello
Data da última modificação:23/08/00
http://www.priory.com/psych/tralimen.htm