Asas para quem quer voar...

Rubem Alves

Eu me lembro, tinha uns seis anos, minha mãe me pôs para dormir, não consegui, um fantasma futuro me dava muito medo e ansiedade, pensava que chegaria um dia em que eu cresceria, meu pai e minha mãe morreriam, eu ficaria sozinho no mundo, sem ninguém para cuidar de mim, eu teria de tomar conta da minha vida, teria de trabalhar para ganhar dinheiro, mas o que é que eu poderia fazer? Comecei a chorar. Minha mãe me ouviu. Contei-lhe minha aflição. Mas as mães e os pais jamais imaginam o tamanho da aflição das crianças. Estava escuro. Não vi o seu rosto. Mas sei que ela sorriu ao ouvir meu sofrimento. Os sofrimentos das crianças são sempre bobos para os grandes. E aí, do fundo da minha aflição, imaginei duas alternativas. "Já sei!", eu disse. "Poderei ganhar a vida rachando lenha ou mexendo com meus papéis..." Quem rachava lenha para nós era o seu Zé, trabalhava o dia inteiro, suando com seu machado, e ao final do dia ganhava uma pratinha de dois mil réis. Quem mexia com papéis era meu pai, viajante, que estava sempre às voltas com pedidos que ele dactilografava (era assim que ele falava, "daquitilografar") em sua Smith-corona portátil. Assim eu vislumbrava o meu futuro, ou como rachador de lenha ou como viajante. Cresci. Nos mudamos para o Rio de Janeiro. Aí meus horizontes se expandiram. Havia outras possibilidades. Poderia fazer concurso para o Banco do Brasil, ser engenheiro ou ser médico: contar dinheiro, fazer casas e pontes, dar receitas. Essas eram as possibilidades. Meu pai me empurrava para a engenharia, que ele achava a coisa mais importante do mundo. E assim fui, achando que seria engenheiro. Depois mudei de idéia. Resolvi ser pianista. Estudei muito, não deu certo, eu não tinha talento. Os Norman Vincent Peale e Lair Ribeiro são enganadores: não é verdade que "querer é poder". Por mais que a tartaruga reze, Deus não vai lhe dar asas para ela voar como urubu. Resolvi então ser médico. Até que teria conseguido. Eu era bom no cursinho. Mas aí mudei de idéia de novo. E assim eu fui pela vida, estourando que nem pipoca, a cada estouro eu ficava diferente. O que nunca me passou pela cabeça é que algum dia eu seria escritor. Menino, eu gostava de ler. Adolescente, só lia gibis e X-9, revista policial que era o terror da minha mãe. Eu comprava escondido e escondia a revista debaixo do travesseiro. Nunca me preparei para ser escritor. Tanto que minha formação acadêmica sobre o assunto é fraquíssima. Quase nada sei sobre as ciências da escrita. Não me perguntem sobre dígrafos, análise sintática e escolas literárias. Nunca me interessei. Achava tudo isso perda de tempo. Sério mesmo era construir pontes e fazer cirurgias. Na verdade, eu achava aqueles que se dedicavam à literatura uns vadios. Me tirem do pau-de-arara: eu confesso meu pecado, sou ignorante. Eu só sei escrever, sem saber as explicações científicas da minha escrita.

Virei escritor num estouro de pipoca. Independentemente de vontade, planos e preparo. Pura graça. Não me perguntem como escrevo. Diotima, sacerdotiza que deu aulas de sabedoria a Sócrates, disse que todos nós estamos grávidos de beleza. A beleza está dentro da gente, querendo sair. E, de repente, chega a hora do parto e ela nasce. Assim aconteceu comigo, do jeito mesmo como acontece com a pipoca.

Os teólogos medievais se referiam a uma "igreja invisível". Por oposição à igreja visível, que é essa que a gente vê com com bispos, romarias, pregações e dogmas sobre céu e inferno. "Igreja invisível" é o conjunto de pessoas, por esse mundo afora, gente que a gente nunca viu nem verá que, sem que a gente saiba, se comove com as mesmas coisas que a gente. Quem se alegra com a mesma coisa que me trás alegria é meu irmão. Quem chora pela mesma coisa que me faz chorar é meu irmão. Quem acha bonita a mesma música que eu acho é meu irmão. Há um verso de Fernando Pessoa que diz assim: "... E a melodia que não havia, se agora a lembro, faz-me chorar." Pois essa "igreja invisível" (que nada tem a ver com igrejas, bispos e dogmas) é um coral que canta uma melodia inaudível que enche o universo. Especialmente em momentos de grande solidão a gente a ouve - e isso nos dá grande alegria e nos faz chorar: não estamos sós.

Pois é isso que tenho experimentado através da escritura. Na ciência, para se saber se a palavra é verdadeira, é preciso que haja pesquisas e provas. As evidências se encontram fora das palavras. As palavras, sozinhas, não valem nada. Na literatura é o contrário. A literatura são as palavras que fazem amor com a gente. Cada palavra é uma extensão da mão, um prolongamento dos dedos. A palavra nos toca, o corpo e a alma reverberam. É a reverberação do corpo e da alma que atestam a verdade da palavra. Literatura é um jeito de fazer amor à distância.

Por isso vivo repetindo àqueles que gostam das coisas que escrevo: "Vocês gostam do que escrevo não porque eu escreva coisas que vocês não sabem. Vocês gostam do que escrevo porque o que escrevo faz reverberar a beleza que estava dormindo em vocês." Palavra do Bernardo Soares: a arte é a comunicação às pessoas da nossa identidade íntima com elas. As crianças cantam uma canção, dão-se as mãos e brincam de roda. Um mesmo texto compartilhado é assim: através do espaço invisível damos as mãos com pessoas que não conhecemos e brincamos de roda. Somos iguais. Não estamos sozinhos. É a experiência de comunhão.

Parte da alegria de quem escreve é receber o eco das reverberações: cartas. Cartas são documentos pessoais, confidências. Mas eu quero compartilhar com vocês trechos de uma carta que recebi faz duas semanas. Afinal de contas, pertencemos à uma mesma confraria, uma mesma "igreja invisível"... De uma jovem de 18 anos. Depois de um parágrafo introdutório, ela escreve "Nasci normal... Mas a partir dos 12 anos começou a se desenvolver em mim uma doença hereditária, chama-se Miopatia, distrofia muscular (D.M.C.). Essa doença aos poucos, progressivamente, vai atrofiando os nervos das pernas e dos braços e, por causa dessa doença minha coluna foi afetada, hoje eu mal consigo me locomover. Os médicos disseram que essa doença não tem cura. Cada dia que passa me sinto mais fraca e não vejo saída. Sou tão capaz mentalmente, mas meu corpo não me acompanha. ( ...) Eu não vejo mais razão para continuar nesse mundo. E eu tomei a decisão de me suicidar, já tinha tudo planejado, mas o seu livro me fez refletir e fui adiando.."

"Tornamo-nos eternamente responsáveis pela pessoa que cativamos" - palavras do Pequeno Princípe. Eu e a jovem nos demos as mãos através do espaço vazio invisível. Fiquei me sentindo responsável por ela, que nunca vi mas que já é parte de mim. Pensei, então, que se ela tivesse acesso à Internet, ela poderia viajar pelo mundo sem sair de casa: visitar museus, bibliotecas, lugares distantes e, sobretudo, poderia se comunicar - especialmente com aqueles que têm a mesma doença que ela. Sua vida se tornaria mais bonita. E ela poderia "fazer amor" com outras pessoas e outros lugares, através da distância. Pensei se ela teria recursos. Não me atrevi a perguntar. Mas ela mesma me revelou, numa carta posterior, que mora numa escola de 1º grau da qual sua mãe é caseira. Pensei então que há muitas pessoas e empresas que trabalham sempre com computadores do último modelo, e que vão encostando os outros, que ficam inúteis e sem valor. Por meio dessa crônica estou fazendo um pedido à minha "igreja invisível". Se alguém tiver um computador em bom estado e encostado, bem que poderia trazê-lo de volta à vida, dando-o a essa jovem, como um órgão novo para que sua mente possa viajar pelo mundo! Sendo esse o seu caso, é só se comunicar comigo, e-mail rubem@correionet.com.br .

 "Quem se alegra com a mesma coisa que me trás alegria é meu irmão. Quem chora pela mesma coisa que me faz chorar é meu irmão"

 "Parte da alegria de quem escreve é receber o eco das reverberações: cartas".

voltar a edição do mês

Polbr

mail2.gif

Giovanni Torello

Data da última modificação:08/10/99