Doenças diferentes ou pacientes parecidos ?
João Paulo Consentino
Solano
Médico pela
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo,
tendo-se formado em 1987, e psiquiatra pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP),
1989. Atualmente, trabalha no setor de HD em Saúde Mental da Disciplina
de Psicoterapia e Psicodinâmica do Departamento de Psiquiatria desta instituição.
RESUMO : A partir de dois grupos da nosografia psiquiátrica, o autor tenta demonstrar que o fato de se tratarem de categorias distantes não pode ofuscar o fato de que as pessoas doentes apresentam funcionamentos mentais, muitas vezes, bastante próximos, independentemente do diagnóstico que portem. Através de um corte em um momento da relação médico-paciente, identifica falas (e ausência delas) que parecem se repetir, quaisquer que sejam os formulados diagnósticos; identifica dinamismos mentais peculiares a um contingente (subestimado) de pacientes, dinamismos estes que sobrevivem, quaisquer que sejam as fórmulas medicamentosas empregadas na terapêutica; e sugere que o médico parece preferir pensar nos formulados e fórmulas, em detrimento de estar observando estes dinamismos mentais e comunicacionais em sua relação com o outro.
No atendimento a drogadependentes internados que recentemente iniciamos a fazer, temos notado que os pacientes muitas vezes se aproximam de seu médico ou terapeuta para fazerem pedidos ou reclamações. Geralmente,poliqueixas somáticas ou mal-estares vagos são comunicados. Porém, são comunicados de uma forma tão peculiar que, em vez de queixas, mais apropriado seria chamarmo-las "clamores". É também notável que os pedidos feitos são geralmente concluídos da mesma forma: ou se pede uma adição ou uma alteração medicamentosa. Quase sempre estes pacientes gostam de fazer um longo e confuso histórico de seus sintomas, locupletar seu ouvinte de justificativas e possibilidades de explicação e, em seguida , enunciar um pedido bastante preciso, que coloca no outro toda a responsabilidade atinente ao complexo dialético "dar-não dar" (também poderíamos chamar de complexo dialético "dar-ou-reter").
O profissional, após escutar o paciente, (não por acaso) então sente a necessidade de escolher entre dois caminhos: satisfazer ou não o pedido do paciente. Temos observado que se o médico escolhe o caminho de satisfazer o paciente, não há marcha ou passo terapêutico. Quando,porém, o profissional escolhe o caminho contrário (o de dizer NÃO ao paciente), muitas coisas começam a acontecer.
Quem trabalha com dependentes químicos pode ter em sua bagagem de conhecimentos a informação de que o dependente tem, em seu funcionamento psíquico, a necessidade de adicionar para se sentir bem (ou buscar sua satisfação). Adicionar substâncias, ainda que sejam remédios utilizados pela Medicina. Mas será que ter esta informação na bagagem equivale à formação que este profissional deve ter para compreender as reações desencadeadas a partir de seu "não" ao paciente ? Além disto, se compararmos este grupo de pacientes os dependentes químicos ao grupo de pacientes ansiosos, somatizadores, "poliqueixosos", conversivos (e outros, com os quais temos tido bastante contato ao longo dos últimos anos, atendendo à Psiquiatria de Urgência),encontraremos alguma semelhança ?
Em nossa opinião, sim, encontraremos várias semelhanças nos dinamismos mentais destes pacientes : estão ansiosos, primeira; trazem um repertório variado de queixas; querem a ajuda que vem do outro (ou de fora); comunicam um pedido de ajuda muito incisivo; e, geralmente, não se satisfazem se o profissional que os escuta não propuser uma medicação ou substância que sirva para o seu tipo de sofrimento. Mas a principal semelhança que vemos nestes pacientes (a partir deste ponto, melhor seria chamá-los de pessoas), é a sua assídua puerilidade e a sua competência para fazer clamores. Clamores pueris, chamá-los-íamos assim.
Queremos aqui chamar puerilidade a uma forma de funcionamento mental muito parecida com a que observamos em crianças sadias. Obviamente, perdurando na maior parte do tempo, na vida adulta, teremos em mãos adultos muito pouco sadios pouco aptos à vida de relação em sua plenitude, com dificuldade de vincularem-se afetivamente, com prejuízos em seu potencial de produção ocupacional e com tendências a comprometimentos psiquiátricos vários, como drogadição e distúrbios do espectro ansioso, por exemplo.
Dissemos acima que quando um profissional diz "sim" aos pedidos destas pessoas marcadamente pueris, não há avanço terapêutico. Dizer "sim" é o que geralmente é feito, pois é mais fácil; deixar tudo como está é mais fácil, pensam ambos, profissional e paciente. Mas... e se não se quiser deixar tudo como está ? O que acontece quando se diz "NÃO" ? Bem, a primeira coisa que acontece é que a raiva do paciente aparece, ou melhor, torna-se para o próprio mais consciente. Quando se diz "sim", paciente e terapeuta viram-se as costas recíproca e simultaneamente; o paciente vai para um lado, tendo sustentada pelo médico a "anestesia"de sua raiva; e o médico, (devido, entre outros, ao fenômeno interacional dinâmico da identificação projetiva), vai para o outro lado, provavelmente com mais raiva do que antes de ser abordado pelo paciente com suas queixas vagas e pedidos de adição/alteração medicamentosa (ou de conhecimentos teóricos). Quando, porém, diz-se "NÃO" ao pedido manifesto pelo paciente (na prática médica, este é o caminho mais difícil), o profissional tem a oportunidade de encarar o pedido latente de seu paciente inclusive os seus "não-pedidos".
Quando se diz "NÃO", fica o paciente mais proprietário de sua raiva. Mas... raiva... de quê ?
A resposta nos parece ser : raiva por estar sentindo FALTA. Perceber a própria raiva desencadeada pela falta é um avanço terapêutico. Aprender a tolerar a falta daquilo que o paciente acha que o outro tem é, sem dúvida, um enorme avanço terapêutico. Poder verbalizar ao outro que se sente raiva dele porque se acha que ele tem algo que falta ao primeiro, e que o outro não lhe quer dar... isto sim, é que é avanço terapêutico! E isto vale, tanto para quando se abordam os transtornos psiquiátricos aqui evocados, como também para transtornos psiquiátricos outros, e enfermidades clínicas usualmente tratadas só com remédios e acompanhadas por exames de controle e consultas de retorno.
As pessoas-pacientes com funcionamento mental marcado pela primariedade infantil, enquanto não forem tratadas, continuarão fazendo pedidos estereotipados que geralmente enraivecem os profissionais que as assistem.
O drogadito e o ansioso, às vezes, tornam-se dependentes de um benzodiazepínico ou outro medicamento, porque o médico optou pelo caminho mais fácil o do silêncio. Mais terrível que isto é, porém, que o paciente conseguiu passar perto de uma atenuação para sua doença, mas teve reforçados pelo médico o seu bem-estar enquanto "ser-no-mundo", a sua ilusão (temporária) de satisfação interior e a sua ausência de faltas.
Talvez se dê o caso de que exista hoje uma grande aberração no mundo da saúde e da doença: o paciente procura no médico e na Medicina aliados seus para manter a sua raiva muda e a sua falta eternamente despercebida. E tem encontrado estes aliados.
Bibliografia
1- KLEIN, M. , "Os Progressos da Psicanálise", Ed. Guanabara Koogan, 1952.
2- LAPLANCHE e PONTALIS , "Vocabulário da Psicanálise", Martins Fontes, 1982.
3- OGDEN, T., "Os Sujeitos da Psicanálise", Casa do Psicólogo. 1996.
João Paulo Consentino Solano
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Data da última modificação:10/08/99