No Paiz dos Yankees
Erick Messias, médico
Corria o ano de 1886 quando o jovem cearense Adolfo Caminha, guarda-marinha do Almirante Barroso, percorreu os Estados Unidos, vindo participar da exposição internacional, naquele ano ocorrendo em Nova Orleans. Visitou ainda Baltimore, Filadelfia, Anapolis, West Point e Newport. Suas impressões de viagem ficaram registradas no livro No Paiz dos Yankees – nessa grafia, publicado em 1894. Esse mesmo rapaz já havia se declarado abolicionista e republicado numa cerimônia com o imperador, em 1884, e fugido de Fortaleza para o Rio com uma jovem senhora casada, em 1890. Ainda iria publicar A Normalista e o O Bom Crioulo.
Cá estamos no ano 2000 e uso o título do relato da viagem de 1886 para nomear essa coluna, dedicada a iniciar um diálogo deste residente de psiquiatria, cearense sem tantas aventuras ou habilidades literárias, com a população de psiquiatras brasileiros na rede mundial. Essa coluna serão minhas contribuições, seguindo os passos do Paulo Negro que tão brilhantemente iniciou essa tradição. Nossas colunas serão diferentes porque diferente somos, em diferentes estágios de nossas carreiras nesse Paiz dos Yankees. Meus relatos serão principalmente baseados nas palestras semanais – Grand Rounds – da Universidade de Maryland e do hospital Sheppard Pratt onde trabalho – mas não apenas nesses.
O Sheppard Pratt fica no subúrbio de Baltimore, em Towson. Fundado em 1891 com o dinheiro de um quaker, Moses Sheppard, o prédio principal, hoje, é a reunião dos dois prédios originais, um destinado a homens, outro a mulheres. O hospital original deu lugar a um complexo e complicado health system que abriga entre outras coisas um seguro saúde, uma empresa de manage care, além do hospital e da clínica.
A palestra discutida abaixo foi apresentada por John Gardner, um doutor em psicologia que estudou com o Otto Kernberg na Cornell e é professor de psicologia na Johns Hopkins e na Universidade de Maryland, no Grand Round do Sheppard em 8 de fevereiro.
O titulo da palestra é: Moisés , Buda e Freud, sem dúvida um titulo incomum nessas épocas de medicamentos, receptores e genética – dos quais, certamente, muito falaremos no futuro. Por hora fiquemos com algumas idéias apresentadas pelo Dr Gardner em sua conferência no Sheppard.
A obsessão de Freud por Moisés
A obsessão de Freud pela figura de Moisés já foi estudada e discutida por vários autores, incluindo Peter Gay, Harold Blum e Y Yerushalmi. O próprio Freud devotou bastante tempo e energia escrevendo e discutindo Moisés e seu papel na criação do judaismo, com a lei mosaica. Vários de seus livros tratam do tema religioso, como "O futuro de uma ilusão" e "O mal estar na civilização", enquanto outros tratam explicitamente da figura de Moisés : "O Moisés de Miguelângelo" e "Moisés e o Monoteísmo". Mas onde nasce essa obsessão ou, o que nos informa esse sintoma?
Uma ciência judia, uma religião atéia ou nenhuma das duas?
Numa de suas cartas a Jung, Freud escreve: ‘se eu sou Moisés , você será meu Josué…". Inicialmente notamos uma fascinação por Anibal, o herói semítico que desafia Roma, fascinação que Freud carregava deste a infância. Já aí temos posto importantes elementos do conflito: religião, um povo oprimido por um poder temporal maior e a vontade de resistir e de conquistar. Daí segue-se seus ‘sonhos romanos’, onde a cidade eterna se coloca como objeto difícil do desejo. Começa aí a inibição de Freud de visitar Roma. Quando finalmente o faz, em 1912, desenvolve uma relação com o Moisés de Miguelângelo, que pode ser comparada a uma transferência. Visita a estátua diariamente e por fim escreve um livro sobre a mesma.
De onde esse conflito? John Gardner acredita que há vários paralelos entre a psicanálise e a religião, particularmente com o momento fundador do Judaísmo pela Lei Mosaica, quando Moisés ‘liberta’ os homens da barbárie os oferecendo um código de conduta. Freud veria a si mesmo como aquele que traria aos homens a liberdade do auto conhecimento e a superação dos conflitos entre os instintos. Nesse momento há o que ele considera uma contribuição ‘mosaica’ ao legado cultural da humanidade. Notamos então que há elementos religiosos e espirituais na psicanálise – daí partimos para o segundo paralelo do texto: Buda.
Diferentes caminhos para a ‘iluminação’1
Há muito da religião judaica na psicanálise: estudantes do Talmud aprendem através de discussão, na qual um colega discute com o outro até que se chegue a uma verdade. Na análise também há uma busca da verdade, que acaba sendo uma ‘construção’ de uma verdade entre o paciente e o terapêuta. Havemos de encontrar similaridades com o Budismo?
O interesse nas idéias orientais e seus paralelos a psicanálise, enquanto modo de entender a humanidade, não é novo. Jones, Rank, Ferenczi, Alexander e Jung já falavam na possibilidade de estudar o misticismo oriental do ponto de vista psicanalítico. Nos anos 60, Erich Fromm chamava atenção para os paralelos entre psicanálise e o processo de autoconhecimento proposto pelas tradições místicas orientais, em particular o budismo. Ambas as práticas buscam facilitar a auto observação, criando uma agência mental que observe as reações emocionais momento a momento, levando-nos a tomar consciência de emoções e pensamentos que nos assombram a todo momento sem estarem sob controle da nossa vontade consciente.
A técnica psicanalítica e a técnica budista de meditação também possuem pontos em comum. Na meditação a pessoa é instruída a ‘sentar, relaxar e prestar atenção’, enquanto que na psicanálise o paciente teve ‘deitar, relaxar e dizer tudo que lhe venha a mente’. Em ambas é necessário focar nossa atenção em nossa própria experiência interior. Em ambas as técnicas o fluxo da consciência corre melhor quando abolismo a censura interior, assim como ambas propõe a ajuda de um mestre, ou analista. Esses paralelos nas técnicas levou Engler a concluir que a ‘regra básica’ da psicanálise tem guiado a prática de meditação por pelo menos 2500 anos.
Assim ficam os paralelos: Moisés fundando o judaísmo com a Lei Mosaica – oferecendo à sociedade regras de condutas, Freud buscando libertar o homem, indivíduo, da tirania dos instintos, pelo conhecimento e pela auto observação e Buda construindo o caminho oriental para a iluminação através da meditação.
A pergunta final fica relacionada ao fato de Freud não ter percebido esses paralelos entre seu processo de auto conhecimento e a meditação budista. A possibilidade principal reside na ‘visão de mundo’ da época, onde os preconceitos e estereótipos acerca do mundo oriental eram ainda mais fortes que os de hoje, colocando assim a prática budista longe do radar intelectual de Sigmund. Romain Rolland escreveu a Freud tentando convencê-lo a estudar a meditação do ponto de vista psicanalítico. Freud responde a seu pedido numa carta:
Eu deveria tentar penetrar na floresta indiana com sua ajuda, mas tenho mantido distância da mesma por conta de uma mistura de amor helênico pelas proporções, sobriedade judia e uma timidez filistina. Eu deveria tê-lo feito antes, ja que as plantas dessa floresta não deveriam me ser estranhas, mas não é fácil ultrapassar os limites da nossa própria natureza. (Freud, 1960, pg 392)
Por outro lado a insistência de Freud em fazer da psicanálise uma ciência, em contraponto a religião, também deve ter pesado na decisão de ‘ignorar’ os paralelos e evitar comparações.
Se Freud tinha dificuldade em aceitar ideias misticas orientais no comeco do século XX o que podemos dizer de nos próprios? Havemos de superar o eurocentrismo e também o orientacentrismo, nas palavras de Jeffrey Rubin, se quissermos ter uma síntese coerente de diferentes tradicões. Às portas do século XXI tanto o budismo quanto a psicanálise são práticas múltiplas (Kleinianos, Lacanianos, Freudianos entre outras escolas psicanalíticas e Zen, tibetano, chines, coreano entre outras tradições budistas) no entanto uma síntese criativa parece estar em andamento.
Conclusões?
Certamente esse esboço não faz justiça ao cuidadoso trabalho desenvolvido por John Gardner,que é co editor de ‘Object relations theory and religion: Clinical aplications’, e tem dedicado parte de seu trabalho clínico acerca da intersecção entre psicoterapia e meditação. Essa brevissima introdução tambem não almeja delinear sequer um semblante do movimento que procura integrar budismo e psicanálise atualmente em curso nos EUA – o American Journal of Psychoanalysis dedicou um numero especial, em 1999, ao tema. Gostaria apenas que esse relato deixasse perguntas e curiosidades acerca desse movimento que procura unir tradições do oriente e do ocidente na busca de um melhor rendimento no nosso trabalho clínico e uma melhor compreensão do humano. Inté.
Notas
(1) estou usando o termo ‘iluminação’ como tradução para mindfulness
Referências
Engler J (1986) therapeutic aims in psychotherapy and meditation: developmental stages in the representation of self. In K Wilber, J Engler, D Brown (eds), Transformations of Consciousness. Boston: Shambhala
Freud, E (1960) Letters of S Freud. New York: Basic Books
Fromm, E (1960) Psychoanalysis and Zen Buddihism. In DT Suzuki, E Fromm & R DeMartino, Zen Buddhism and Psychoanalysis. New York: Harper Brothers
Epstein, M (1995) Thoughts without a thinker, Psychotherapy from a Buddhism Persective. New York, Basic books
Rubin J (1999) Close enconters of a new kind: toward an integration of psychoanalysis and buddhism. In American journal of Psychoanalysis 59: 5-24 ver também: Psychotherapy and Buddhism: toward an Integration. Plenun Press, New York (1996)
Data da última modificação:10/03/2000