Psiquiatria, outros olhares...

ANGÚSTIA E CULTURA, O MAL ESTAR DA GLOBALIZAÇÃO (*)

Dr. Antonio Mourão Cavalcante

Falamos exaustivamente em globalização. Mas, qual seria a influência desse processo na vida das pessoas?

Inicialmente deveríamos pontuar o que chamamos de globalização. O termo insinua, como sugeria Mac Luhan, que o mundo virou uma aldeia global. Muito mais do que a compreensão que o mundo virou uma imensa cidade, seria oportuno destacar que esse conceito tem uma dimensão - hoje - insistentemente econômico. O poder é sobretudo determinado pelos que detém a "força da grana".

O que tem a ver com a vida do cidadão comum? Qual a relação com a vida afetiva e emocional das pessoas? A relação direta com o ser humano, com o seu cotidiano, passa por uma série de dimensões que vamos analisar.

Primeiro, o emprego era fixo, com vínculo definido para o resto da vida. Naquela empresa, uma vez iniciado, ficaria até se aposentar. Havia a garantia de uma renda, que não seria alterada. O famoso salário. E uma integração social. O indivíduo era identificado pelo trabalho que exercia. Pelo que ele era capaz de fazer. Era conhecido, socialmente, pela tarefa que habilmente executava.

Hoje o emprego é flexível. Não há qualquer compromisso entre o empregado e a empresa. Muitos vezes prestando serviço, mas com laços funcionais em outra empresa. A famosa terceirização. Portanto, está sempre presente a possibilidade da mudança, a qualquer momento. Os laços são precários. Não existe profundidade, compromisso. Pode haver a ruptura a qualquer instante.Uma precariedade presidindo estas relações. Um trabalho desprovido de qualquer garantia. Exige-se ainda uma série de características do empregado : criatividade, facilidade de comunição, capacidade de improvisação, rapidez de raciocínio, adaptabilidade e interesse geral. Haja adrenalina!

Deixou de ser algo de um mundo passivo, onde se esperava que as coisas mudassem, para ir atrás do que estava acontecendo.

Pierre Bourdieu denuncia que existe uma tática nesse pensamento. O trabalho com as palavras. Uma espécie de dicionário novo, onde os termos adquirem outros significados. Não se designa mais "os patrões" mas as "forças vivas da nação". Por isso, talvez, os governantes sempre recebem de uma maneira tão solícita os empresários, os banqueiros, enfim, a gente da "grana" e, de uma maneira tão repulsiva os empregados e os servidores. Não se usa mais o termo demissão, mas "enxugamento", ou "corte nas gorduras’. Uma empresa demite milhares de servidores e vai-se falar em "reengenharia operacional". Um plano corajoso de recuperação social da empresa. O dicionário é acrescido de outras palavras de igual valor: flexibilização, desregulamentação, plano voluntário de desligamento. Como diz o autor, passa-se a mensagem - dessa nova ordem - que é universal e de uma suposta libertação.

Mas, a estratégia parece não enganar muita gente. Até As Meninas, grupo baiano de canção, repete insistentemente em seus versos axé: "é que o de cima sobe e o de baixo desce". Na Califórnia, uma das unidades mais ricas dos Estados Unidos, o orçamento das prisões corresponde ao dobro do orçamento de todas as universidades reunidas. Começa por ai um desmascaramento, que, na realidade, não se trata de uma invenção para o desenvolvimento, mas uma estratégia para a exploração. Para a acumulação de riqueza. Outro elemento inovador assinalado pelos estudiosos, nesse processo de globalização, é o da construção de um poder desterritorializado. Vamos explicar: Gilberto Dupas, que escreveu Economia Global e Exclusão Social, diz que um dos mais famosos fabricantes de tênis do mundo, a Nike, não produz diretamente nem mesmo os cadarços dos tênis. Ela terceirizou toda as suas atividades industriais. São 15 mil funcionários que se dedicam unicamente ao marketing, ao desenvolvimento de produtos, a sub-contratação de serviços e produção. Que as dez maiores corporações mundiais faturaram 1,3 trilhões no ano de 1997. Esse valor é equivalente a tudo que juntos Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai, Venezuela conseguiram produzir naquele ano. Esses países juntos não chegaram a superar as 10 maiores comporações do mundo. O poder deixa de ser um poder local, um Estado local, para ser essa coisa despersonalizada, que não tem cara e está em todo canto. Outro crítico severo dessa tendência, que é o editor chefe do jornal Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet. Ele fala que o mundo era marcado, até recentemente, pelo progresso e o relógio social. Progresso estava ligado ao desenvolvimento. Partia-se da idéia que a miséria só seria exterminada com o desenvolvimento e este se fazia com o aumento da produção. Quanto ao relógio social é o princípio de que para cada um há um lugar na máquina, no espaço social. Esta lógica foi rompida e agora nós temos, no lugar do progresso a comunicação. Há a imperiosa necessidade de criarmos espaços para o diálogo. Espaços para a comunicação. No lugar do relógio

social, fala-se em mercado. Por isso, vai ser importante quem possa contribuir com o mercado, nas suas vertentes. Estar pronto a produzir ou a consumir. E, quem não participa, nem da produção, nem do consumo, está excluído. Lembremo-nos, por exemplo, dos idosos com baixa ou nenhuma pensão. Nessa perspectiva a desigualdade não é mais pecado. Se você não está bem, é porque está do lado dos insolventes. Se inaugura um novo paradigma. Pode ser resumido assim : não temos estruturas coletivas capazes de fazer obstáculo a lógica do mercado. A lógica do lucro. Não há mais interesse de Estado. Interesse coletivo. Social. O que conta é o mercado. Ele dita as regras. Mais mercado, menos Estado. Verifica-se uma impotência dos cidadãos. Ontem mesmo líamos nos jornais a manchete que os remédios, na virada do mes, tinham aumentado em até 48,7%. Não precisaram de audiência com qualquer autoridade, nem mesmo de autorização de qualquer órgão regulador. Vamos apelar para quem? Ao mesmo tempo assistimos ao clamor dos funcionários públicos pedindo aumento, depois de 5 anos sem qualquer reajuste de salário. Christophe Dejours resume essa situação, em outro livro muito interessante, chamado A banalização da injustiça social: "Tudo acontece em nome da busca do progresso econômico, na qual estariam em jogo, com a mesma gravidade que nas guerras, a sobrevivência da nação e a garantia da liberdade. Só que agora se fala de uma justa causa. Dessa guerra sã que é a guerra do mercado." Como um ex-combatente, aquele que perde o emprego sofre de males psicológicos, dissocia-se, padece diante da angústia da família. É sabido que esse processo leva à doença mental ou física, pois ataca os alicerces da identidade. A cada dia aumenta, no mundo inteiro, o número dos excluídos do mercado de trabalho. E, pior, ampliam-se os riscos de exclusão. Mesmo quem continua empregado, por aumento da carga de trabalho e pelas pressões que podem virar ameaças e mesmo desembocar em novas demissões. Ora, o desempenho de quem trabalha sob pressão tende a declinar. Há um efeito dominó. Gerentes modernos, aproveitando-se dessa tensão, buscam mais produtividade dos subordinados, insistindo no discurso da ameaça de demissão. Denuncia o autor que nesse jogo há requintes de crueldade. Por exemplo, as empresas não hesitam em demitir os mais antigos. Assim eles alijam da memória da empresa as práticas do passado e dar ares de modernidade. Afasta possíveis testemunhos desfavoráveis nas questões trabalhistas da empresa. O autor fala em "banalidade do mal". Esse novo sistema baseia-se na metódica ameaça, do medo, da maior necessidade de produção e consumo. Portanto, feito esse rápido passeio sobre a globalização, pode-se perguntar: o que tem a ver o presente tema com a ansiedade e a angústia? Entendemos ansiedade como aquilo que é objetal, circunstancial. Real. Vejamos algumas situações: 1.Estou extremamente inquieto com o resultado de um concurso que participei, cujo resultado sai amanhã. Isso é ansiedade ; 2. Minha paquera vai vir ou não? Fico ansioso. Ansiedade ; 3.Tenho medo de viajar de avião. Esse medo exacerbado gera uma ansiedade muito grande. Ansiedade. Agora, falar de angústia é referir-se a algo mais existencial. Mais ontogênico. Mais do ser. Seria pertinente falar de angústia quando nos referimos à globalização? Ora, o tema reenvia ao mais profundo do ser humano. O que está em jogo é a própria identidade do ser, o ser social. E como social, o humano. O Homo sapiens que se constrói na natureza como o ser que faz. Homo fabius. O homem do trabalho. No contexto dessa globalização o que está em xeque é sobretudo a questão da identidade do ser humano como unidade ontológica. O que se atinge com esse processo de globalização é o próprio âmago da identidade do homem. A unidade familiar, quando ninguém mais sabe quem é o chefe, quem pode ser o provedor. Quem são os parceiros? Quando a família promove sua diáspora a cada dia para continuar sobrevivendo. Daí a figura do menino de rua, do pai de rua, da família que se fragmenta. Da infelicidade social, porque sem trabalho, sem moradia, quem eu sou? E, igualmente a submissão a modelos culturais que não representam nossas raízes. Ainda agora, numa entrevista ao Jornal do Brasil (02.06.00), o grande compositor Chico César denunciava a impossibilidade de divulgar seu último CD. As gravadoras impõem modelos de música e somente estas podem tocar nas emissoras de rádio e TV. Se não fizer conforme esse modelo, imposto pela indústria do ramo, ele não terá divulgação.

Há uma inversão total do que seriam os valores culturais. E nós somos submetidos a esse consumo estúpido, diário, na mídia, sobretudo na televisão. Comprometemos a nossa identidade cultural. Já não existe Pátria, nem família, nem religião. Será que ainda existe o Homo sapiens? A questão é ontológica quando discutimos a globalização. Ela reeenvia aos valores constitutivos da personalidade no indivíduo como ser social.

Nesse contexto podemos citar alguns exemplos.

= as igrejas que vem do Norte. Eletrônicas e messiânicas, apoiadas numa grande plataforma midiática, elas destroem progressivamente todas as manifestações tradicionais, como a Umbanda e o Candomblé. O que é muito trágico para a identidade negra e nacional;

= os funcionários públicos, sobretudo os dos bancos públicos - Banco do Nordeste, Banco do Brasil, por exemplo - que acuados, se submetem às mais hediondas humilhações, como as transferências compulsórias e as demissões "voluntárias". Dezenas de funcionários cometeram suicídio, forma única que encontraram para expressar o desespero dessas perdas. Com certeza, podemos falar em angústia, posto que uma questão iminentemente existencial.

Edileuza, pequena criança apareceu em uma família quando tinha 8 anos. Ela era sobrinha de uma empregada da casa. Chegou meio desconfiada, observando tudo. Mas, nem conhecia a capital. Foi progressivamente se acostumando com a casa e a família. Pois, um dia, assistindo novelas na televisão, escutando as outras serviçais falarem sobre os atores, seus papéis e suas vidas privadas e paralelas, tudo parecendo muito confuso, ela salta de lá e exclama : eu só queria saber o que eu sou na vida real!

Isso tem a ver com a questão profunda do ser. Falta um sentido para a existência. Ainda somos Homo sapiens?

Referência Bibliográfica

  1. BOURDIEU, Pierre - Bourdieu, farol da crítica radical - Gilles Lapouge - Jornal da Tarde, SP - Caderno Sábado - 06.06.98 ;
  2. DEJOURS, Christophe - A banalização da injustiça social -Trad. Luiz Alberto Monjardin, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas ;
  3. DUPAS, Gilberto - Economia e Exclusão Social - pobreza, emprego, Estado e o futuro do capitalismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 219 páginas.
  4. RAMONET, Ignacio - A Geopolítica do caos - Petrópolis, Ed. Vozes, 1998.

(*) Trabalho apresentado na IV Jornada Nordestina de Psiquiatria e Saúde Mental, Salvador (Bahia, 01-03/junho/2000 - Mesa Redonda: Novas Expressões Clínicas da Angústia.

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Giovanni Torello

Data da última modificação:08/06/2000