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Psicanálise e/ou Psicoterapia
A.Carlos Pacheco e Silva Filho
Doutor em Medicina - Departamento de Psiquiatria
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,
Graduated Fellow – The Institute of Living,
Hartford, Conneticut, U.S.A.,
Membro efetivo e Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise
de São Paulo.
A psicanálise, fala-se à boca pequena, "está em crise", atribuindo-se a mesma a diversos fatores como o avanço das neuro-ciências, seu alto custo, o tempo exigido, etc.
Entretanto, uma das causas a meu ver não adequadamente considerada e gradualmente cada vez mais evidente, é o vício original de nossa ciência e técnica, de vir de uma sociedade sectária, de funcionamento fechado, quase religioso, algo que embora venha sendo corrigido, ainda em grande parte existe. Também creio contribuir para isso o ensino de autores ao invés de assuntos como é feito, pelo menos, na maioria dos institutos em todo o mundo.
Felizmente, cientificamente falando, muitos autores que põem em dúvida conceitos até recentemente tidos como "dogmas", a exemplo da teoria dos instintos (pulsões), têm conseguido publicar trabalhos em revistas credenciadas, inclusive o "International Journal", caso de P. Nigone (Parma) e Giovanni Liotti (Roma) (3), quando afirmam: "Levou anos para Freud abandonar a teoria da sedução e levará possivelmente mais tempo para os psicanalistas abandonarem a teoria dos instintos de vida e de morte".
Consideram a primeira correção das idéia iniciais da metapsicologia freudiana a feita por Hartman na década de trinta, na teoria de estar uma parte do Ego livre de conflitos, enfatizando a realidade externa e a necessidade adaptativa à mesma. A escolha objetal pós-edipiana seria devida preponderantemente ao ambiente, aprendizado e oportunidade. A ansiedade de castração e as restrições superegóicas se deveriam mais à causas externas. As relações de objeto seriam narcísicas (busca de satisfação por redução da tensão).
A segunda correção mais importante teria sido a teoria das relações objetais, com a concepção de outras formas motivacionais além das pulsões, de vínculos autônomos de busca objetal, de contatos reasseguradores, de domínio competente, da exploração e da curiosidade.
Estaria se alterando o mito romântico do século XIX, de ser a felicidade só encontrada pela liberação das restrições sociais.
Atualmente estaria se tornando mais importante do que o controle de impulsos a atribuição de significados, afim de estruturar novos esquemas no enredo da vida.
Seria básica a confrontação entre as expectativas e situações novas, entrando em jogo a perspectiva cognitivo-afetiva (da psicologia cognitiva) e a importância da curiosidade. Para eles, principalmente após Piaget e outros, a psicanálise estaria se aproximando da psicologia experimental. As idéias culturalistas, continuam, teriam sido confirmadas pelas pesquisas com crianças de Stern (1985) e os estudos de Lischtenberg (1989) sobre motivação.
O autor destas linhas, formado em medicina em 1948, dedicou quinze anos à Psiquiatria dinâmica em consultório e hospital; fez residência de dezoito meses em hospital norte-americano especializado quando se interessou pela Escola Culturalista de K. Horney, H .S. Sullivan e E. Fromm. Durante vários anos após seu retorno à São Paulo colaborou com diversos jornais, revistas científicas e leigas, procurando difundir esses conhecimentos, incorporando também muito da "Análise Existencial" baseada em Heidegger, com adeptos psiquiatras como L. Binswanger e Meddard Boss.
Após quinze anos nessas diretrizes aproximou-se inclusive de Iracy Doyle no Rio de Janeiro (adepta dos culturalistas) cujo esforço para estabelecer no Brasil uma Escola Culturalista infelizmente não vingou, em grande parte devido a sua morte prematura.
Por falta de opção, em 1964 resolveu fazer análise com uma analista kleiniana em São Paulo, a principio sem almejar fazer uma formação completa e depois, mudando de idéia, encaminhou-se neste sentido. Participou, tanto como candidato como membro associado, efetivo e analista didata, de muitas atividades de ensino e administrativas, tendo sido tesoureiro em uma das gestões, na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Cientificamente falando, nunca se considerou filiado a grupos, quer freudianos, kleinianos ou bionianos, conforme foram se delineando em nossa sociedade, julgando haver em psicanálise, como em toda ciência, uma evolução contínua, com a contribuição de inúmeros autores, embora Freud, M. Klein e Bion se destacassem, como procurou demonstrar em livro publicado em 1976. (4)
Além disso, observando uma tendência internacional de um forte grupo de psicanalistas para o gradual afastamento da teoria dos instintos e sua importância na estruturação emocional, dando-se maior importância às influências do meio humano, com a Escola Inglesa das relações objetais e a Escola de Kohut e da intersubjetividade, viu-se inclinado a participar dessa orientação que reputa como mais clínica e menos metapsicológica, para usar uma expressão de Freud.
Estas novas idéias se aproximando dos culturalistas e trazendo por outro lado, maior profundidade aos seus postulados, que desprezavam em certo grau a psicodinâmica de cada pessoa envolvida na relação interpessoal.
Os maiores contribuintes para o desenvolvimento nessa linha foram, acredito, Winnicott, Fairbairn e Guntrip na Inglaterra e Kernberg, Langs, Capper, Ogden e Grotstein nos Estados Unidos; os três últimos baseando-se principalmente em Bion, cujas idéias têm desenvolvido.
Do ponto de vista clínico, cada vez mais considera-se a inter-relação transferência - contra-transferência como fundamental. De parte do analista, destacando-se sua capacidade de "contenção" (detesto a expressão "continência", generalizada em nossa sociedade), de ser um bom continente para as identificações projetivas do paciente, sua capacidade de rêverie (Bion), holding (Winicott), ou "empática" (Kohut), com conotações bem próximas. Quanto às interpretações, concordo com Meltzer quando as considera meras opiniões hipotéticas do analista a serem ou não aproveitadas pelo analisando, conforme a receptividade às mesmas, de onde a importância do "timing", da oportunidade, em um momento de sintonia emocional analista-analisando.
Também as idéias kleinianas da posição esquizo-paranóide e depressiva (que inclusive podem ser aceitas sem uma conotação com a teoria freudiana dos instintos) e a oscilação entre as duas em sessões analíticas, segundo Bion, são susceptíveis de grande utilidade para o entendimento analítico. Algo que, a meu ver, não acontece com a "grade", também de sua autoria. O próprio Bion chegou a essa conclusão, não mais a utilizando. Apesar disso outros, mais realistas do que o rei, acham-na útil, se não indispensável.
Não se pode duvidar como tanto M. Klein como Bion, apesar de sua grande contribuição para a psicanálise, possuem muitos conceitos metapsicológicos, tão especulativos como foi a "Metapsicologia" de Freud, cuja comprovação científica nunca se conseguiu.
É minha impressão que as chamadas "sociedades psicanalíticas" virão, com o tempo, a ser mais genericamente "sociedades psicoterápicas", abrangendo todas as formas psicoterápicas de tal modo que muitas vezes o psicoterapeuta, mesmo sendo psicanalista com formação adequada, possa escolher formas breves de psicoterapia, conforme o paciente. Nos Estados Unidos isso já está sendo feito em grande escala.
Dentro da International Psychoanalytic Assiociation, I.P.A., apesar de existirem muitas correntes com idéias não raro divergentes, considera-se caracterizar um lidar psicanalítico a interpretação da transferência isto é, no conteúdo latente da sessão, independentemente do conteúdo manifesto. Cada sessão seria como um "sonho" do analisando no qual o paciente estaria manifestando seus sentimentos em relação ao analista. Seriam as únicas "interpretações mutativas" (Strachey), as verdadeiramente provocadoras de mudanças emocionais estruturais, necessárias para a evolução emocional do paciente.
Entretanto, ao que parece, apenas dentro do kleinismo exagerado, tal atitude é levada ao extremo pois, em outras correntes, interpretações dinâmicas não transferenciais são também consideradas válidas.
Entre nós, em reuniões científicas de discussão de material clínico, eu vinha notando como o analista cujo material clínico estava sendo focalizado, fazia muito poucas interpretações transferenciais, se é que o fazia. O mesmo verifiquei em supervisões e argüições sobre relatórios clínicos mostrando tudo isso, como o critério analítico poucas vezes vinha sendo usado. Nos Estados Unidos verificou-se o mesmo, inclusive em material clínico de analistas destacados.
Observando esses fatos passei a reler revistas antigas dos "culturalistas" como as da "Clínica Karen Horney" de Nova York (The American Journal of Psychoanalisis) cujos artigos da década de cinqüenta já mostravam idéias que hoje começam a ser difundidas dentro de publicações de sociedades filiadas à I.P.A., inclusive no "International Journal".
Para Karen Horney a busca humana básica seria a auto-realização, com o afastamento da neurose, impedidora do desenvolvimento. Essas idéias, expostas na década de cinqüenta, muito se assemelham às de D. Winnicott, quando assinala o "falso self" bloqueador do self verdadeiro.
Na mesma época H. S. Sullivan, grande psiquiatra em Washington, foi considerado fundador de uma escola que definia a psiquiatria como a "ciência das relações interpessoais ", cujos estudos sobre a esquizofrenia e sua psicoterapia são, ainda hoje, válidos. Tiveram expansão notável com Frieda Fromm Reichmann, cujo método é exposto de maneira lúcida no "Nunca lhe prometi um jardim de rosas" de H. Green (autobiografia de uma esquizofrênica). A designação de Sullivan para o analista como "um observador participante" já mostrava a inexistência da objetividade pura do analista, conceito hoje pacífico em todas as correntes dentro da I.P.A.
Embora muitos analistas ainda defendam a importância da sexualidade (do instinto ou pulsão sexual) na estruturação da personalidade, a realidade clínica vem mostrando, como sempre defenderam os culturalistas, depender a sexualidade de cada pessoa de sua estruturação emocional, de fatores nem sempre sexuais. Esses fatores (motivações) estariam mais ligados à necessidade de segurança, de autorealisação, de dependência e auto-afirmação, idéias antigas dos culturalistas. A sexualidade seria muito mais conseqüência do que causa de outras motivações.
Outra questão a ser assinalada é que nenhuma orientação (escola) psicanalítica pôde provar ser dona da verdade e obter melhores resultados do que as outras, por maiores que sejam as divergências teóricas existentes. Conclui-se daí, cada vez mais, a veracidade do refrão "Na prática a teoria é outra", aqui perfeitamente válido.
Nos Estados Unidos, já nos anos cinqüenta, foram feitos estudos neste sentido, procurando comparar os resultados da técnica psicanalítica clássica e as da chamada psicoterapia de orientação dinâmica e outras formas do lidar psicológico, não fundamentadas em conceitos psicanalíticos. Concluiu-se serem os resultados das duas primeiras equivalentes, e de ambas bastante superiores aos de outras formas de psicoterapia não baseadas na psicanálise.
De onde precisarmos mesmo focalizar nossa atenção no encontro psicanalítico (psicoterápico), na capacidade receptiva (de contenção) do analista, nas suas qualidades empáticas e na virtude de ser livre de dogmatismos e ou narcisismo, julgando-se dono da verdade, procurando impor suas idéias, modo de vida ou qualquer outra coisa ao paciente. Enfim, compete-lhe criar um ambiente, uma situação analítica liberal, expontânea, onde o paciente sinta-se inteiramente livre para tudo expressar e analisar-se junto com o terapeuta e não apenas ser analisado pelo último.
Durante muito tempo os analistas, com a crença na necessidade de serem completamente "neutros" (como se isso fosse possível), um espelho onde o analisando se visse refletido, tornaram-se muitas vezes desumanos, frios, verdadeiros robôs. Justificavam a anedota do analista que deixou um gravador em seu lugar e foi tomar café em um bar onde logo depois chegou o paciente que disse ter deixado o gravador dele para "dialogar" com o do analista... Houve analistas que usavam ternos, camisas e gravatas sempre iguais para não dar ao paciente elementos para conhece-los melhor e com isso contaminar a transferência...
Hoje tais atitudes caíram no anedotário. Sabemos que o ambiente do consultório, tanto físico como humano, influi no sentido do paciente fantasiar sobre a personalidade do analista; as características pessoais do mesmo podem favorecer ou dificultar o processo analítico (psicoterápico) conforme sintonizem-se ou não com as do paciente.
O húngaro Franz Alexander, que se radicou em Chicago onde foi considerado um dos fundadores da "Escola Psicossomática Norte-americana", preconizava a "experiência emocional corretiva" ou seja: o analista assumiria com seu paciente uma atitude diversa daquela traumática, pela qual foi responsável um adulto significativo na infância, afim de estabelecer na transferência essa experiência corretiva. Entretanto a mesma se verifica em qualquer psicoterapia profunda bem conduzida, sem a necessidade do terapeuta assumir papel oposto ao traumatizante na infância do paciente, atitude anti-psicanalítica, contribuindo para o aumento da dependência do analisando, necessitada de ser analisada e não satisfeita. Seria um problema contra-transferencial o qual, se existente no psicoterapeuta, indicaria um traço de personalidade a ser mitigado, se não resolvido com sua própria análise.
Outro ponto importante é, na contratransferência, diferenciar-se o negativo, como no caso acima, do uso possível a ser feito pelo analista de seus sentimentos para entender o paciente, percebendo suas identificações projetivas. Assim por exemplo, pode o analista sentir-se confuso por assim "desejar" o paciente ao projetar a confusão no analista, ou por ser um problema do último.
Muitos acham não ser isso um fenômeno contra-transferencial por ter o analista consciência do mesmo. Por isso Freud e outros, como Bion, atribuírem o termo apenas aos aspectos negativos inconscientes da personalidade do analista, susceptíveis de serem nocivos ao processo psicanalítico. Também não há dúvida relacionarem-se as associações do paciente, em muito, com o dito ou feito pelo analista, de onde o material trazido sempre se relacionar com o modo de ser, pensar e agir do analista (psicoterapeuta) em suma, com sua personalidade e suas características facilitadoras ou dificultadoras do processo. De onde a importância de ter feito o analista ou psicoterapeuta uma análise com profissional competente, afim de serem aperfeiçoadas pelo auto-conhecimento, suas qualidades positivas e corrigidas pelo menos, as negativas susceptíveis de prejudicar seu modo de agir e de interpretar. Muitos casos de impasse na análise e de reações terapêuticas negativas freqüentemente atribuídas ao paciente, decorrem, não raro, da conduta, do modo de analisar, etc. do analista. Assim poder-se-ia dizer não haver pessoa inanalizável, o que ocorreria apenas com certo tipo de analista, podendo o ser com outro de personalidade diferente, sintonizando melhor com o paciente. Nas interpretações o tom de voz é importantíssimo a meu ver, tanto quanto a oportunidade (timing) da mesma. Nunca feitas como afirmações peremptórias e argumentação enfática do analista, quando o pacienta se recusa a aceita-las.
Devemos ainda atentar para o fato de ter a psicanálise (psicoterapia) deixado progressivamente de ser um ato médico tanto que é hoje praticada por formados em psicologia, em geral mulheres, mais do que por profissionais da medicina. Embora a maioria das pessoas a procurar análise o façam por distúrbios emocionais variados, a conduta do analista foge completamente à dos profissionais da medicina e as melhoras do paciente, no referente à sintomatologia clínica, decorrem de seu crescimento emocional, sendo este, decorrente de um melhor entendimento de sua realidade interna, promovendo o mesmo, por assim dizer, uma auto-educação de sua estrutura afetiva.
Assis (1), psicanalista recém ingressa em nossa Sociedade, em trabalho premiado enquanto ainda candidata, aborda com maestria e intuição muito do que vem a psicanálise atual estruturando. É dela: "O analista é criado na relação com o analisando, como a mãe que só aparece ao ter o primeiro filho. Vamos nos conhecendo e nos definindo à medida que vivemos nossas relações. Por isso a relação analítica é um lugar privilegiado para a produção de conhecimentos sobre subjetividades. Ou como assinala Ogden: O ser humano tem necessidade de estabelecer construções intersubjetivas, por identificações projetivas e introjetivas, para sair das andanças fúteis e intermináveis existentes no mundo dos objetos internos. Na análise, os dois elementos da díade vão construindo significados que beneficiam a evolução emocional de ambos o que é evidente, principalmente no paciente, pela assimetria da relação interpessoal que tem essa finalidade. Ou, segundo Capper: A interpretação é um sonho conjunto. A função alfa do analista o faz capaz de ter o "sonho" impossível para o paciente ao funcionar com elementos beta. Tal seria a rêverie (Bion). O analista necessitaria de liberdade e espontaneidade- não temer a fantasia inconsciente e as forças do Id localizadas nos objetos internos, concretizados na transferência pela identificação projetiva e introjetiva recíprocas. O analista não pode temer ser "conhecido" (visto) pelo paciente".
Os analistas freudianos, principalmente os americanos da "Psicologia do Ego", defendiam (alguns ainda o fazem) a importância para o paciente da reconstrução do passado ou seja, do mesmo lembrar o reprimido.
Já outros, como os kleinianos, não têm esta preocupação pois julgam ser o passado importante só no "vivido" na transferência através das identificações projetivas dos objetos internos, que sintetizam o passado importante. Por exemplo, se um analisando teve um pai autoritário ou assim sentido, (os objetos interno são deformações maiores ou menores feitas pela fantasia inconsciente) essa imago (imagem internalizada) pode, por identificação projetiva, ser forçada para dentro do analista, que é então sentido como autoritário, por mais liberal que seja. Em outras palavras, o passado só vale até onde constituiu um objeto interno, susceptível de ser projetado no relacionamento interpessoal. Na análise, o paciente regredido emocionalmente, o faz no analista.
As pesquisas da moderna neuro-ciência concluíram pela existência de dois tipos de memória: 1) A declarativa ou explícita (autobiográfica), restauradora do passado de modo consciente, que teria sede no lobo temporal e no hipocampo. 2) A implícita ou processual, responsável pelas habilidades adquiridas e outras experiências pregressas. Estruturas sub-corticais, núcleos basais e o cerebelo seriam por ela responsáveis. Quando existem cargas emocionais para essa memória a amígdala é a responsável. Seria um tipo de memória anterior à explícita.
Por outro lado, certas vivências (experiências vividas) conduzindo a modos patológicos de sentir (experimentar) podem ser anteriores a qualquer memória (ao desenvolvimento do sistema mnêmico) capaz de codificar e reter a lembrança de maneira a poder ter uma representação consciente ou inconsciente em uma narrativa.
Fonagy (2) diz bem: "A transferência é a única maneira do analista conhecer o mundo interno do analisando, quando este repete inconscientemente um modelo antigo de relacionamento, organizador do comportamento interpessoal. São réplicas de ocorrências antigas, distorcidas defensivamente por desejos e fantasias, no momento de seu aparecimento. Como exemplo, o paciente provocador, na expectativa de punição do analista. O retorno da memória seria epifenômeno da exploração de modelos mentais estabelecidos em relacionamento antigo. A ação terapeutica advém da mudança de ênfase entre diferentes modelos mentais de relações objetais, existentes na memória implícita".
O autor destas linhas, em meados de 1998, meio desiludido com os muitos defeitos das sociedades psicanalíticas em geral, principalmente a inclinação para formar grupos sectários que se degladiam, e da nossa em particular cujo "custo-benefício" lhe pareceu absurdo, resolveu pedir um afastamento temporário (ou definitivo?) afim de refletir melhor se valeria a pena continuar membro da mesma. Quanto das discussões psicanalíticas seriam meras especulações metapsicológicas muitas vezes estéreis, não levando a nada e quanto têm realmente de valor para a prática clínica?
Em seguida, gostaria de apresentar um caso da minha clínica, como exemplo do que aqui tenho procurado abordar.
A., com cinqüenta e três anos, casado, empresário, procurou-me pela primeira vez aos vinte e três anos, ainda solteiro, por ter fantasias de não ser muito viril embora nunca tivesse tido impotência sexual. Chegou mesmo a ficar apavorado com a possibilidade de "se tornar mulher" ou poder ser tido como homossexual. Tinha vida sexual promíscua não perdendo oportunidades de ter relações, em regra pouco duradouras, tendo facilidade em conquistar mulheres por ser considerado homem bonito e atraente.
Nascido na Itália, veio para o Brasil com os pais e um irmão mais velho dois anos que sempre foi seu ídolo. Personalidade forte e dominadora, tomou o lugar do pai, já há muito falecido e que era o oposto. Esse irmão organizou uma firma muito bem sucedida para a qual A. muito contribuiu, com sua competitividade e capacidade de trabalho.
Aos três anos de idade teve difteria (sic) e como seqüela teria ficado semi-paralítico por algum tempo, necessitando cuidados especiais. Casou-se aos trinta e cinco anos tendo dois filhos. Sempre se julgou algo tímido, temendo ter trejeitos bucais semelhantes aos de alguns homossexuais, embora isso nunca ocorresse. Inúmeras vezes parou e retomou a análise. No seu relacionamento comigo, após um número pequeno de sessões, sentindo-se melhor, interrompia. Em meados de 1998 voltou para uma nova "reciclagem", conforme chama.
Nota-se neste paciente uma luta intensa entre necessidades de dependência, "negadas" por sentimentos de onipotência e competitividade, em "formação reativa". Essas necessidades foram, sem dúvida, incrementadas na infância pela semi-paralisia e aumentaram suas dúvidas sobre sua virilidade. Procurou então tornar-se um "machão" duro com os subalternos e, no terreno sexual, um conquistador. Seu perfil psicológico enquadra-se perfeitamente no descrito por Franz Alexander em paciente com úlcera péptica, da qual ele mesmo sofreu no passado.
Sempre teve claustrofobia, sintoma que foi compreendido como não suportar ficar imobilizado, precisando estar sempre em movimento, em ação. Embora já tenha viajado de avião inúmeras vezes, sempre se sentiu angustiado, obrigado a tomar soníferos em viagens mais longas e tranqüilizantes nas mais curtas.
No início de julho de 1999, quando estava a bordo de um avião prestes a decolar para curta viagem, sentiu subitamente tal ansiedade a ponto de solicitar sair da aeronave e ser levado para a enfermaria do aeroporto onde recebeu atendimento médico.
Com o prosseguir da análise, passando a aceitar mais não ser um "super-homem" onipotente mas um ser humano com todas as limitações comuns a todos nós, compreendeu também ter sido o episódio acima relatado, fundamental para aceitar tal fato. Fiz-lhe ver ter sido uma "luz forte" da qual não pôde escapar como fazia com as pequenas "luzinhas" das sessões comigo, embora as mesmas possam tê-lo preparado, aberto o caminho para a aceitação de suas limitações humanas. Passou a compreender como sempre usou uma "máscara", inclusive nas sessões de análise. Não conseguia ficar dependente muito tempo, interrompendo o trabalho após ligeiras melhoras sintomáticas.
Agora percebe, diz, "como o que o senhor dizia eram tiros que não acertavam bem no alvo, por ainda não estar preparado. Agora sinto termos acertado na mosca, embora ainda conserve certo medo da volta de meus temores e minhas atitudes de super-homem. Mas estou muito mais confiante. Já não sou tão duro com meus subalternos e em reuniões de negócios percebo que todo mundo tem um pouco de neurose e assim, não estou só."
Vemos no caso, como uma experiência traumática humilhante (ter de parar um avião prestes a decolar), serviu como uma ducha fria, em paciente já preparado para uma maior compreensão, até então periférica, para se tornar central e produzir melhora apreciável em suas fobias, fantasias de superioridade e atitudes neuróticas.
Este caso, creio mostrar, como outros da minha clínica, como nem sempre são necessárias "interpretações transferenciais mutativas" para haver um progresso, pois A. foi analisado apenas duas vezes por semana e apenas ocasionalmente foram feitas interpretações transferenciais.
Não quero com isso afirmar não serem as últimas importantes em toda análise, quando feitas no "timing" certo, sem serem forçadas como me parece muitas vezes se faz, principalmente entre os kleinianos. O lidar com este paciente coloca mais como psicoterapia de orientação dinâmica do que como psicanálise, mesmo porque no início, há muitos anos, eu não havia começado a formação analítica, embora com esta, creio ter me aperfeiçoado como psicoterapeuta. Em contraposição, não creio pudessem os resultados positivos serem melhores caso o paciente tivesse sido submetido a uma análise mais formal.
Também julgo ser possível na exposição de um caso clínico, como procurei fazer, prescindir de metapsicologias complicadas de cada "guru" e faze-lo de forma mais simples e compreensível, sem situa-lo dentro de uma escola ou corrente psicanalítica. Lembremos Bion quando assinalava: " Precisamos de menos teorias e menos livros. Mais importante é aprendermos a ler nossos pacientes". Nunca quis ser um "guru" embora não resistisse em fabricar teorias metapsicológicas nem sempre fáceis e muitas vezes especulativas, infelizmente aceitas por alguns como a verdade suprema.
Para terminar, meu pai, professor catedrático (como na época chamava-se o titular) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e fundador do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina onde também foi professor catedrático por muitos anos, como psiquiatra fortemente organicista me dizia: "Eu não estarei vivo para ver a superação da psicanálise com o avanço dos medicamentos psicotrópicos, mas você ainda o verá". É clara a minha discordância de tais presságios mas os avanços das neuro-ciências e o aparecimento de drogas cada vez mais eficientes lhes dão parte de razão.
Creio enfim, que na clínica, a psicanálise ficará reservada para a preparação de psicanalistas (psicoterapeutas) e para poucos casos de pessoas de melhor cultura, desejosas de uma maior evolução emocional. O grosso dos pacientes cairia na psicoterapia dinâmica combinada com medicação psicotrópica. E, para isso, nós psicanalistas, deveremos nos preparar. Nossa formação, acredito piamente será, nesse sentido, sempre superior a de outros psicoterapeutas, das inúmeras correntes hoje existentes.
Otto Kernberg (3), um dos mais prestigiados psicanalistas norte-americanos, presidente da I.P.A., propõe ensinarem os institutos de psicanálise, psicoterapia psicanalítica aos seus candidatos. Afirma possuirmos agora um amplo espectro de critérios baseados na psicanálise, que expandem de maneira significativa a eficiência terapeutica e assim, reforçam o impacto social da psicanálise.
No referente à psicanálise como teoria (ciência) da personalidade humana nunca deixará de haver evoluções, com novos modelos aperfeiçoando, quando não deixando de lado antigos paradigmas. Bem como, em suas aplicações para o melhor entendimento de outras ciências humanas e para as artes em geral, em especial o cinema e a literatura. (6)
Dentro da psicologia e psicopatologia igualmente, o conhecimento trazido para o entendimento da dinâmica emocional, tem sido sempre ímpar sendo algo que sempre permanecerá nas chamadas Psicologia e Psicopatologia dinâmicas.
Referências bibliográficas.
RESUMO
O autor, baseando-se inclusive em sua experiência clínica de muitos anos de trabalho e de ensino, procura mostrar como a psicanálise embora em crise, continua evoluindo em muitos conceitos, procurando um sentido mais clínico e menos "metapsicológico", baseado na inter-relação paciente-analista (transferência-contra-transferência).
Na prática clínica, julga ficar reservada a psicanálise clássica para a formação de psicanalistas (análise didática) e psicoterapeutas, devendo para isso se prepararem os analistas para fazer mais psicoterapia de orientação dinâmica. Esta então, ensinada nos próprios institutos (orgãos de ensino) das sociedades de psicanálise.
ABSTRACT
The author, based also in his clinical experience and many years of working and teaching, tries to show as psychoanalysis although called "in crisis" is suffering evolution in many of its conceptions, looking for a more clinic and less "metapsychologic" approach based in the relationship patient-analyst (transference-counter-transference).
At the clinical practice he thinks that classical analysis should be done for preparation of analysts (psychotherapists) in "training analysis", who must be prepared to do more dynamic oriented psychotherapy. This than, also taught at the institutes (faculties of teaching) of the psychoanalytic societies.
Palavras-chave: Psicanálise. Psicoterapia. Evoluções. Prática clínica.
Data da última modificação:08/06/2000