Psicanálise em debate

MISCELÂNEA – 1) Anotações acerca de AMERICAN BEAUTY; 2) Sobre algumas notícias do jornal; 3) Respondendo ao leitor

João Sérgio Siqueira Telles

Ver o filme AMERICAN BEAUTY, de Sam Mendes (diretor) e Allan Ball (roteirista), como uma critica sócio-política dos dias de hoje dos Estados Unidos é uma visão redutora e empobrecida de uma obra que tem características universais. Claro que em sendo situada nos Estados Unidos, inevitavelmente trará características da cultura daquela sociedade, mas a problemática de fundo transcende os limites da geografia. As infelicidades domésticas, as loucuras familiares não são privilégio do povo americano nem características específicas do nosso tempo.

Tal como em "Brás Cubas", de Machado de Assis, AMERICAN BEAUTY trata das "memórias póstumas" de Lester Burnham, interpretado por Kevin Spacey em grande atuação. Ele é um homem de meia-idade que ao ser despedido do trabalho sofre uma forte crise de identidade. Regride a um comportamento adolescente – recusa-se a procurar um emprego condigno, vai trabalhar numa lanchonete, passa a fumar maconha, ouvir os discos de sua juventude, fica fazendo fantasias sexuais com uma adolescente amiga de sua filha, vai fazer musculação para tentar impressioná-la.

Poderíamos considerar o filme uma sinfonia em torno da meia-idade. Uma passagem difícil por ser aquela em que fica mais evidente que muitas das exigências do ideal do ego não se concretizarão. Não é mais possível manter a ilusão de que elas se concretizarão no futuro, pois este já chegou e não trouxe o que era esperado. Daí as feridas narcísicas, a depressão por não poder alcançar o que o ideal do ego exigia.

Mas AMERICAN BEAUTY mostra que não é só a meia-idade que é uma passagem difícil, a própria vida é uma passagem difícil. Lester ao ver a filha adolescente insegura e com medo, tenta dizer-lhe que "é da idade", que depois "isso passa". Mas desiste. Desiste porque não é verdade que "isso passa". Crescemos, viramos adultos e continuamos inseguros e com medo. Cabe a cada um achar a forma de conviver com isso.

Assim, o filme mostra um grande painel das dificuldades da vida em famíia e em sociedade. Um marido se masturba no banho matinal porque não tem vida sexual com a mulher há anos. Uma mulher insatisfeita e ambiciosa, que se recusa sexualmente para o marido e tenta seduzir homens que considera mais poderosos e importantes. Um outro marido tirânico e autoritário esconde escabrosos segredos enquanto impõe órdem e disciplina a uma mulher completamente anulada e a um filho que pensa conhecer. A grande barreira de contato entre adolescentes e pais, temporariamente transformados em estranhos uns para os outros, o fosso de gerações sendo superado num lento trabalho amoroso. As incertezas e sofrimentos da adolescencia, compensados pela rebeldia, pela mitomania, pelo comportamento "as if". As relações entre vizinhos, típicamente regidas pela projeção, desde que eles, pela proximidade física e social, se adequam perfeitamente à função de depositários daquilo que em nós mesmos nos é insuportável e inaceitável. O medo, a desconfiança, o ódio, a loucura, mas também o amor e a beleza, a presença da arte.

O que vemos em AMERICAN BEAUTY são cenas universais, humanas, onde os relacionamentos pessoais e familiares são exibidos sem hipocrisia. Se a forma é americana, o conteudo é universal. A mulher de Lester, não seria – por exemplo – uma edição atualizada de Madame Bovary?

O filme mostra como nossas sociedades urbanas modernas leigas organizam a procura da felicidade. Como esta é confundida com a posse de bens materiais, com o consumo, com o poder e o prestígio sociais. Não está implicito nesta afirmação nenhuma nostalgia pela falácia religiosa, que promete o paraíso na vida eterna. Pelo contrário, como diz Freud em O MAL ESTAR NA CIVILIZAÇÃO, talvez a felicidade humana consista em poder tolerar a perda do narcisismo (onipotência), aceitar nossas limitações e fazer o melhor possível com elas, vivendo o momento presente longe da compulsão à repetição que eterniza o passado em permanente presentificação, a isso acrescentando-se a capacidade de entender a permanente insatisfação estrutural que o desejo provoca, pois ele corre e jamais se satisfaz.

Se AMERICAN BEAUTY expõe as dificuldades e impasses da vida, também mostra que ela não se reduz a isso. Embora o próprio Lester aja nesse sentido, o personagem do jóvem vizinho cristaliza mais esta vertente. Ele está permanentemente filmando com uma "camcorder". Poderíamos entender isso como uma impossibilidade defensiva de entrar em contato direto com a realidade: em muitos momentos vemos como prefere ver a namorada através da câmara do que olhá-la diretamente. Ou podemos vê-lo como uma metáfora da posição do artista, aquele que está permanentemente vendo a realidade através de sua sensibilidade especial, reconstruindo-a e recriando-a com sua arte. A arte é o filtro que tudo marca e registra, que resgata da dissipação do tempo a beleza que existe apesar de tudo, visível para alguns.Também ele encarna o mito do artista que usa a loucura da sociedade sem se corromper. É muito interessante que o jóvem tenha um interesse que poderia ser considerado mórbido pela morte (filmou um mendigo morrendo congelado, sem se preocupar em salvá-lo, filma uma ave morta, pára para ver o cortejo fúnebre, se encanta com a imagem final do morto em sua poça de sangue). Ele diz que é como ver com o "olho de Deus", o captar essa estranha beleza da vida que às vezes chega a ser-lhe insuportável. É significativo que a fala final de Lester, que nos fala do além, repete quase literalmente suas palavras. É como se somente depois de morte, ou com a morte, pudesse atingir a compreensão que o artista tem em vida, essa capacidade de captar beleza, seja onde ela estiver

AMERICAN BEAUTY muito mais que uma denúncia do sistema capitalista, é um hino de amor à vida. A fala final do personagem é taxativa. Se a vida tem sua sordidez, sua mesquinharia, sua loucura, sua destrutividade, tem também amor e uma beleza que às vezes chega a ser insuportável para aqueles que podem observá-la. Apesar de tudo, mantem-se a esperança na arte, na lealdade, no amor que se renova no jóvem casal que parte para uma mitica Nova York. É a saga humana que recomeça. Se os pais fracassaram – e teriam eles fracassado? – a promessa é mantida, revivida nos filhos que recomeçam o sonho.

AMERICAN BEAUTY reforça os valores humanos da existência e nos lembra que nada nos resta senão viver, pois a alternativa é o nada, o não-ser, a não-existência.

 

A) Crianças tomam mais antidepressivos nos EUA

Consumo de drogas psiquiátricas entre pré-escolares aumentou entre 1991 e 1995

Divulgando uma descoberta que peritos médicos classificaram de ‘inquietante" e "muito surpreendente", pesquisadores informaram ontem que o número do pré-escolares que tomam estimulantes , antidepressivos e outras drogas psiquiátricas aumentou significativamente entre 1991 e 1995.

O uso de estimulantes – mais comumente o metilfenidato, a forma genérica do Ritalin – aumentou de duas a três vezes entre as crianças de 2 a 5 anos matriculadas em dois programas Medicaid estaduais e em uma organização de preservação da saúde no Noroeste dos Estados Unidos.

O número de crianças que tomam antidepressivos com receita médica duplicou nos programas Medicaid. O consumo de clonidina, remédio para a pressão arterial que se está tornando popular cmo tratamento de problemas de atenção, também deu um salto entre as mais de 200 mil crianças estudadas. Embora os pesquisadores já soubessem, há algum tempo, que essas drogas estavam sendo cada vez mais receitadas para crianças um pouco maiores, o estudo, publicado na edição do Journal of the American Medical Association (JAMA), é o primeiro a documentar o aumento entre crianças de menos de 5 anos.

Pesquisas anteriores mostraram que houve um significativo aumento no uso de estimulantes e antidepressivos para o tratamento de pacientes de 5 a 19 anos de idade. Em um estudo de proporções menores, feito entre pessoas inscritas no Medicaid em Michigan, em 1998, os pesquisadores descobriram que 57% de 223 crianças com menos de 4 anos de idade que tinham problemas de deficit de atenção e hiperatividade haviam recebido no mínimo uma droga para o tratamento destes distúrbios. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 24/2/2000 – reproduzindo notícia do The New York Times, assinada por Erica Goode).

B) DROGAS PSIQUIÁTRICAS EM TERRITÓRIO PROIBIDO

Crianças pequenas dos Estados Unidos estão sendo bombardeadas com remédios psiquiátricos que sequer foram testados para elas.

A tendência alarmante foi detectada num amplo estudo publicado na semana passada, que concluiu que , em 1995, 1,5% das crianças de dois a quatro anos do pais tomavam algum tipo de psicotrópico – drogas que alteram a mente do paciente para controlar hiperatividade, depressão, manias e psicoses. Não há dados mais recentes sobre o assunto, ms os próprios psiquiatras estão chocados com uma situação que não parece ter mudado desde então.

Muitas das drogas mais usadas, como Prozac, Ritalina e Atensina, sequer foram testadas quanto a sua segurança ou eficácia quando tomadas por pacientes tão jóvens. Essencialmente, os médicos que receitam esses medicamentos estão presumindo que eles funcionarão para quem mal deixou as fraldas, assim como funcionam comprovadamente em adultos e crianças mais velhas.

"Precisamos descobrir a validade do uso de medicação nessas crianças. E será que elas merecem o remédio que tomam?", questiona Julie Magno Zito, professora da Faculdade de Farmacologia da Universidade de Maryland. Ela é especialmente cética quanto ao uso de Ritalina para combater deficit de atenção em crianças pequenas. "O que é um nível de desatenção fora do normal para alguém de dois anos?"

Joseph Coyle, presidente do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Harvard, foi mais longe em suas críticas. O uso de medicação tão poderosa em tantas crianças pequenas é errado, escreveu num jornal da comunidade médica.

Segundo ele, o cérebro de uma criança entre dois e quatro anos ainda está num estágio de desenvolvimento biológico que pode ser atrapalhado ou transformado pelos psicotrópicos. Coyle acredita que muitos médicos receitaram os psicotrópicos como alternativa à psicoterapia para as crianças, que seria o tratamento ideal para seus distúrbios, mas é muito cara e frequentemente não é coberta pelos planos de saúde.

O uso de remédios psiquiátricos em crianças não é exclusividade dos EUA. A prática cresce em todo o mundo, segundo o médico especializado em psiquiatria infantil Ênio Roberto de Andrade, coordendor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo. No Brasil, notou-se um aumento sensível do uso dos psicotrópicos em pacientes bem jóvens nos últimos três ou quatro anos, mas ainda não se vêem crianças antes dos seis ou sete anos sendo medicadas. Para Andrade, a popularização desses remédios vem acompanhando o desenvolvimento da psiquiatria infantil no Brasil, que ainda está em seus estágios iniciais. (Saude – The Wall Street Journal – O ESTADO DE SÃO PAULO – 29/2/00).

Transcrevo essas duas notícias na íntegra, às quais sublinhei o que me pareceu mais importante, por considerar serem elas um exemplo cabal da dupla distorção vivida pela psiquiatria americana. Em primeiro lugar, a ênfase excessiva ao uso de medicação como única atitude terapeutica por parte da psiquiatria mais atualizada (como comenta um profissional, focalizando o uso abusivo de Ritalina para "disturbios da atenção", como avaliar tal função em crianças de dois anos?) e, em segundo lugar, a complicada situação do mercado, onde as companhias de seguro-saúde exercem grande poder, impondo condutas terapeuticas aos psiquiatras (como disse o colega americano citado acima, a psicoterapia seria o tratamento adequado para estas crianças, mas os psiquiatras passam medicação por ser a terapia cara e não paga pelos seguros-saúde).

Isso tudo me parece um grave sintoma, uma verdadeira dissociação sofrida pelos psiquiatras quanto à terapeutica. As drogas são apresentadas como a única alternativa "científica", a conduta médica por excelência, ficando no ostracismo a outra face da questão, ou seja, os estudos cada vez mais acurados sobre o relacionamento familiar, as implicações destas famílias ditas "disfuncionais" no desenvolvimento das crianças, como bem se vê no filme AMERICAN BEAUTY, no relacionamento dos dois casais parentais e seus respectivos filhos. Desta forma, os psiquiatras terminam por não estarem efetivamente habilitados para a compreensão dos sutis e complexos movimentos na dinâmica familiar, na relação do casal parental entre si e com a prole, a importância das gerações passadas, do passado familiar.

Assim, frente a uma criança que os pais consideram "hiperativa", ou com "distúrbios de atenção", o raciocínio do profissional tende a valorizar hipotéticas alterações bioquimicas nos neuro-transmissores e não a dinâmica familiar, a forma como a criança se insere no desejo dos pais.

Mais uma vez é preciso reafirmar que as drogas psiquiátricas são um definitivo e irreversível progresso da medicina que muitos benefícios trazem para os que sofrem de distúrbios mentais. Não se pode em são consciência diminuir sua extraordinária importância real. Mas é preciso denunciar as pressões que o mercado, a indústria farmaceutica, os critérios dos seguros-saúde jogam neste sentido, podendo provocar distorções graves na formação e na prática psiquiátricas.

Recentemente lemos que a prestigiadíssima New England Journal of Medicine confessou ter por várias vezes cedida a essas pressões, publicando artigos favoráveis a determinadas medicações escritos por médicos que tinham vínculos financeiros com os laboratórios que fabricavam tais medicações. Isso mostra a que níveis pode chegar essa pressão, envolvendo o que seria o grupo mais de elite da medicina americana, estabelendo espúrios conluios entre a indústria farmaceutica e a academia, tudo sacramentado sob o título de "inviestigações científicas". Envolvidos neste escândalo estavam desde pequenos laboratórios até gigantes como a Bristol-Myers Squibb, a Merck and Co., Pharmacia &Upjohn, Wyeth-Ayerst

Não seria isso semelhante às "investigações científicas" conduzidas nos departamentos de psiquiatria custeado por laboratórios, com resultados "científicos", cheios de dados estatísticas, de comparações com placebos, etc, que chegam à tão ansiada conclusão de estarmos frente a uma grande droga que irá beneficiar toda a humanidade? Não deveriam os códigos de ética médica regularem e observarem tais práticas?

Falei no início em distorções da psiquiatria americana. Vê-se que algo assim também ocorre em nosso meio. Pareceu-me preocupante, se de fato corresponde à verdade, a afirmação do colega citado na segunda matéria. Diz ele: "a popularização desses remédios vem acompanhando o desenvolvimento da psiquiatria infantil no Brasil, que ainda está em seus estágios iniciais".

Não vejo nesta afirmação nenhuma crítica ao abuso da medicação em crianças, parece ela dizer que o uso de medicação não é grande apenas porque "ainda está em seus estágios iniciais", assim logo que a psiquiatria infantil no Brasil tenha se desenvolvido o bastante, também ficará dando Prozacs e Ritalinas para distúrbios de atenção em crianças de 2 anos, sem ter a menor preocupação em olhar a família de onde vem estas infelizes crianças.

 

3) Respondendo ao leitor

Recebi da leitora Márcia Regina Barros da Silva um e-mail sobre minha resenha a respeito do filme de Almodovar, TUDO SOBRE MINHA MAE. Como levanta questões interessantes, reproduzo-o na íntegra e tentarei responder o que ali pergunta.

A própósito, reafirmo o que disse ao iniciar minha participação aqui no Psychiatry on Line-Brazil: é desejo desta coluna manter um contato vivo e dinâmico com seus leitores, estando eles permanentemente convidados a enviarem suas opiniões, críticas e sugestões, que serão sempre benvindas.

 

 

Subject:

almodovar

Date:

Wed, 23 Feb 2000 15:17:11 -300

From:

"Marcia Regina Barros da Silva" <mbarros.dac@epm.br>

Organization:

Universidade Federal de Sao Paulo

To:

setelles@uol.com.br

 

 

 

Dr. Jõao Sérgio,

 

Me interessei pelo tema do seu artigo porque gosto de cinema e porque, como muitos ou como todos, gostei bastante do filme do Almodóvar, mas algumas coisas me incomodaram ao fim do filme.

Gostaria de saber mais sua opinião sobre o significado do pai, porque acho ele um pouco difícil de identificar. Apesar de serem todos frágeis e inconsistentes, o pai do garoto me parece um pouco diferente. Ele não é a figura "normal" a que estamos acostumados, mas exerce um certo fascínio nas mulheres, seduzindo quem ele quer (a freira) e até a nós mesmas, as expectadoras. Foi corrente entre minhas amigas a opinião de que o rapaz escolhido para representar o pai é muito sedutor, bonito e mesmo muito masculino, mesmo com toda vestimenta, maquiagem, etc.

Quem é ele? Um pai que permite aos seus filhos escolherem com quem, ou com o que se identificar? Sendo assim o pai "perfeito", se o filho pudesse saber de sua existência estaria resolvido tanto sua identificação com a figura masculina quanto sua relação com a mãe? Ou ele é totalmente imperfeito, não serve para ser pai, nem mãe, então é afastado para sempre?

Não sei também se a aceitação do filme se faz por uma maior permissividade da sociedade atual ou porque no fim tudo fica aonde deveria ficar mesmo. O filho da trasngressão inicial (um homem com tetas) morre, o filho da segunda confusão não morre, mas é salvo por um milagre (como é dito no filme) e se torna filho de alguém que agora não tem mais nenhuma relação com o transexual que também morreu e a libertou do "pecado".

Ela trabalha, não é prostituta, não é freia (também morreu). Todos os desviantes morreram ou foram salvos, a mãe também é salva pelo milagre de um novo filho. Por isto apesar de ter gostado do filme acho ele um tanto complacente e talvéz até muito cor-de-rosa, em todos os sentidos.

Desculpe o tamanho da mensagem, gostaria de ter uma reposta a respeito destas colocações se não for muito trabalho.

Um abraço,

Márcia

 

Para responder suas perguntas, Márcia, seria interessante analisar a questão colocada pelo filme de Almodovar de uma forma ligeiramente diferente da que fiz em meu artigo anterior. Ali centrei a análise na pessoa do filho, do adolescente morto, numa tentativa de entender de quem era a "mãe" da qual "tudo" se sabia.

O mais claro seria mostrar como as questões de gênero sexual se organizam e a forma como a relação narcísica estabelecida entre mãe e filho joga um papel determinante fundamental nesta situação. Digamos que o centro da questão está na patologia da mãe, Manuela, uma mulher que não teria resolvida a contento seus complexos de édipo e castração, o que faz com que permaneça fixada numa onipotente bissexualidade infantil.. É isso que faz com que mantenha um casamento com um "homem com tetas", como ela mesmo diz. Tal fato a ajuda a negar a diferença anatômica entre os sexos, mantendo a fantasia da universalidade fálica, vendo talvez no marido a figura da mãe fálica. Ao engravidar, concretiza a equação simbólica bebê-falo, vendo no filho o falo por tanto tempo desejado. Por este motivo, dizemos que o filho é o falo que lhe faltava; por isso dizemos que tem uma relação narcísica com o filho, pois não o vê como um sujeito com identidade própria e sim como uma extensão de si mesmo, um "pedaço de si mesma".

É aí que entra o papel do pai. Cabe ao pai a função de cortar a relação narcísica da mãe com o filho, interditando ao filho o gozo com o corpo da mãe e dizendo para a mãe que o filho não é seu falo desejado. Com isso o pai possibilita a existência do filho como subjetividade autônoma, como sujeito desejante. Este seria o "pai perfeito", se é que tal figura existe, e não aquele que deixaria que o filho "escolhesse" com quem se identificar.

E curiosa sua afirmação sobre a figura andrógina de "Lola", o marido de Manuela, o pai do adolescente morto. Ouvi de outras mulheres a mesma coisa, afirmações quanto à atração por ele despertada. Talvez a questão fique mais clara se o compararmos com "Ajuda", o outro transexual. "Ajuda" é um homem transexual, tem seios de silicone e mantem seu pênis, sua identidade de gênero é inteiramente feminina. Já "Lola", também transexual, com seios de silicone e pênis, mantem sua identidade de gênero masculina. A comparação entre "Ajuda" e "Lola" mostra como a presença do pênis passa a ser secundária à identidadade de gênero, ou seja, a envoltura imaginária que a cultura determina para o que é da ordem do masculino ou do feminino. As figuras bissexuais podem ter uma conformação de gênero ora mais masculina ora mais feminina.

É uma questão interessante a atração que as mulheres dizem ter sentido por "Lola". Seria por verem nela uma "figura combinada", as características do pai e da mãe, dentro do modelo kleiniano? Seria uma nostalgia da mãe fálica? Seria ainda resquícios da inveja do pênis, quando a masculinidade do homem é diminuída e contrabalançada com evidentes atributos femininos? Seria uma forma de diminuir o medo frente a masculinidade, que é vivida como muito ameaçadora e só tolerada se temperada com a feminilidade?

Você acha que o filme termina com uma acomodação aos bons costumes e por isso teria sido bem aceito. Não concordo muito com isso. Não acho que tenha havido uma acomodação. Pelo contrário, como falei, acho configurar-se uma sinistra compulsão a repetição de uma Manuela, que bem se encaixaria na categoria de "mães de homens transexuais primários, criada por Robert Stoller.

O assunto é muito interessante e complexo. Caso seja de seu interesse sugiro os livro do autor que acabo de citar, Stoller, ele é uma referência da maior importância. Temos no Brasil três de seus livdro. "A Experiência Transexual", da Imago; "Observando a Imaginação Erótica", também da Imago (fiz uma resenha deste para esta Psychiatry on line-Brazil, há cerca de um ano, com o título "Mona Lisa tem sobrancelhas"?") e "Masculinidade Feminilidade", da Artes Médicas. Recomendo todos eles, são excelentes.

Ainda sobre o filme de Almodovar, recebemos o seguinte e-mail de Leonard Taves, que aborda as mesmas questões com um referencial mais lacaniano. Reproduzimos abaixo.

 

Oi Sérgio, aí vai meu comentário " Tudo sobre minha mãe ".

Gostei muito, chamou-me atenção o entrelaçamento com os filmes " All about , a streetcar named (Eve?mother?father?) desire. Aí onde se inscreve um objeto de desejo, causa de desejo. Que não cessa de não se escrever, que faz com que o discurso (filme, sonho) Almadovariano continue sem um começo ou fim, no que se repete. Coisa de metade. Tentativas malogradas de fazer um. Como fundo a questão do falo, apontada, por exemplo, na questão do transplante de orgãos e na gravidez. Esta talvez a forma mais pronta e acessível de transplante

de orgãos, tentativa de reaver o que foi perdido, persistir nisso pode levar a alienação, como o verificou a mãe privada do filho, após permitir o transplante e ir até o receptor. Dor imensa, falta que a leva numa viagem em busca no tempo-espaço de um objeto perdido, never more, diria o corvo agourento.

Como disse Freud a questão não está no orgão (nem no transplante...) , mas no falo e ele circula. Vissitudes de viagem, análise, da privação à castração, em seu colo um resto de seu trajeto, por ela não transplantado, não parido, um recém-nascido, uma menina. Se algo se repete o faz marcado pela diferença, já não é o mesmo. Atrevo-me a dizer um filme Joyceano, Riverrun.

"All about , a streetcar named (........) desire. Um filme sobre a viagem de uma mulher, sobre a questão do feminino e a solidão-dor desta aposta. Os homens, o masculino, metade perdida, afinal não há relação sexual. Como disse-me uma amiga, ao sair de um quarto, onde alegremente cinco mulheres conversavam: - Se juntar todas não dá um. Concluo, ainda bem que não dá.

Abraços, Leonard.

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Giovanni Torello

Data da última modificação:08/02/2000