Psicanálise em debate

Dr Sérgio Telles

O nome proprio e o desejo da Mãe

Van Gogh, que suicidou-se aos 37 anos, em 29 de julho de 1890, ergue-se atualmente como o maior mestre holandês depois de Rembrandt. É reconhecido como uma das maiores forças que impulsionaram a arte moderna, através da poderosa influência que exerceu sobre o expressionismo.

Como estereótipo do gênio incompreendido, Van Gogh morreu pobre e desconhecido. Enquanto vivo, vendeu apenas um (1) de seus mais de 800 óleos e 700 desenhos. De sua participação com algumas telas no Salão dos Independentes de Paris, em 1888 e 1890 e de sua única exposição individual - em Bruxelas - mereceu apenas um (1) artigo crítico na imprensa. Sua fama - impulsionada por seus amigos pintores - só começou a se impor no início deste século.

David Sweetman (1) discute as circunstâncias do suicídio de Van Gogh. Defende a tese de que tal se deu devido à irresponsabilidade e inconsequência de seu médico, Dr. Gachet. Traz informações curiosas, em que se pese o viés bem norte-americano da ênfase na "malpractice", problema seríssimo na medicina dos Estados Unidos, onde pacientes e médicos se defrontam como inimigos potenciais, para a alegria das seguradoras, que ganham milhões com os seguros que os médicos são obrigados a fazer para escapar dos processos contra supostos (e reais) incúrias e erros.

Sweetman diz que após se auto-mutilar, cortando a orelha, Van Gogh foi internado no Asilo de Saint-Remy, onde foi diagnosticado de "epilepsia hereditária", agravada por "excesso de trabalho e álcool". Dali foi levado para Auvers-sur-Oïse, pelo irmão Theo, para ser cuidado pelo Dr. Gachet.

Dr. Gachet era um figura excêntrica. Vestia-se de forma pouco convencional, seu consultório parecia um macabro laboratório de alquimista, decorado que era com máscaras mortuárias de criminosos guilhotinados. Era um médico "alternativo", com práticas discutíveis para os padrões da época, especialmente no que dizia respeito à cirurgia. Enquanto estudante não tinha conseguido dissecar cadáveres e tinha se graduado com uma tese sobre melancolia. Era pintor amador e gravurista. Tinha, na ocasião em que recebeu Van Gogh, 61 anos, colecionava pintores de vanguarda (os impressionistas) e se interessava pelo então nascente estudo das doenças mentais. Por ter tais características, era tido como capacitado para tratar de pessoas criativas, de artistas, como tinha sido o caso de Pissaro e Cèzanne.

Van Gogh tinha melhorado muito ao sair de Saint-Remy. Estava num período de plena efervescência criativa, pintando um quadro por dia. Dr. Gachet desde o início teria demonstrado pouco interesse pelo novo paciente, achando que ele necessitava apenas de leves aconselhamentos, o que teria feito muito pobremente, em poucas ocasiões.

Antes de chegar a Auvers-sur-Oïse, Van Gogh já tinha tentado por três vezes o suicídio: a primeira, dois anos antes, ao cortar a orelha, e tentando – por duas vezes - envenenar-se com a ingestão de tubos de tinta e solventes. Sob os cuidados de Dr. Gachet, fez a quarta tentativa, dando-se um tiro no peito, no dia 27 de julho. A bala atravessou o tórax, alojando-se na coluna, sem atravessar nenhum órgão ou vaso sanguíneo importante.

Dr. Gachet, que aparentemente não tinha dado muita importância às tentativas anteriores, mesmo então, após o tiro, manteve uma atitude absolutamente inexplicável: permitiu que Van Gogh permanecesse com o revólver, quase como se permitisse que ele se matasse, coisa que Van Gogh fez no dia seguinte, com novo tiro. Em relação ao primeiro tiro, Dr. Gachet não tinha tomado nenhuma providência, alegando que nenhum cirurgião tiraria bala tão profundamente instalada. Sweetman acha que Dr. Gachet provavelmente ignorava os avanços que a cirurgia já tinha feito naquele momento. Paul Gachet, filho do médico, escreveu em suas memórias que o pai não achara necessário tomar nenhuma atitude, acreditando que nada poderia ser feito, a não ser torcer por uma recuperação milagrosa, o que não ocorreu, desde que logo apareceram sinais de infecção.

Podemos imaginar que a atitude de descuido, a não avaliação correta quanto a gravidade do quadro de Van Gogh, dever-se-ia não só ao despreparo médico de Gachet, mas também a uma sua reação contra-tranferencial negativa frente a seu paciente, uma recusa em ajudá-lo. Podemos especular até que ponto um gravurista e pintor amador - como o era Dr. Gachet - não se sentiria acachapado frente a um verdadeiro gênio; até que ponto a inveja, a competição, a rivalidade não teriam determinado este desfecho.

Sweetman acredita que a última fase do pintor em Auvers-sur-Oïse não é expressão de sua doença. Pelo contrário, seria uma "doação de saúde e força espiritual". Van Gogh não teria contaminado as telas com sua loucura, teria lutado para afastá-la de si e de sua obra.

Não deixa de ser irônico, lembrarmos que o retrato do Dr. Gachet, que Van Gogh pintou justamente naquela época, foi vendido em 15 de maio de 1990 para o industrial japonês Ryoei Sato pela astronômica soma de 82,5 milhões de dólares, cifra nunca atingida no mercado de arte.

Sweetman acrescenta dados que nos são do maior interesse. Quinze dias antes do suicídio, Van Gogh recebeu de Paris uma carta do irmão Theo que falava que seu filhinho Vincent Willem - que tinha recebido este nome em sua homenagem - estava seriamente doente.

Van Gogh não poderia ter esquecido que o primeiro filho de seus pais, o que o tinha antecedido, o primeiro Vincent Willems, tinha nascido morto e que ele próprio tinha nascido exatamente no mesmo dia, um ano após sua morte e que tinha recebido seu nome em homenagem a ele, o morto. O pensamento de que agora outro Vincent Willem, seu sobrinho, estava com a saúde muito debilitada, poderia ter complicado ainda mais o instável estado do pintor.

Esta hipótese levantada pelo biógrafo faz muito sentido dentro de uma perspectiva psicanalítica, pois tal acontecimento poderia ter atualizado e agudizado um impasse central na vida de Van Gogh, apontando para um profundo conflito em sua identidade. Tal conflito é decorrente do fato de ocupar o lugar de um outro, de um morto, de ser o representante do desejo materno de negar a morte de um outro filho. Ter esta função no desejo de uma mãe traz como consequência o fato de esta mãe jamais ter reconhecido e legitimado este filho em sua singularidade. (Grifos meus).

Este aspecto do caso de Van Gogh aproxima-se muito do caso Pierre-Marie, descrito por Serge Leclaire (2).

Pierre-Marie, o paciente, também tinha recebido seu nome em homenagem a um irmão morte, de nome Pierre, e em honra da Virgem Maria. Ora, tal fato não é nada simples. Evidencia a impossibilidade de sua mãe realizar o trabalho de luto pela morte do primeiro filho, a tentativa que ela faz de negar a morte. Isso faz com que, diz Leclaire, Pierre-Marie seja uma "figura não articulada do desejo de sua mãe", uma "criança destinada por sua mãe à imortalidade, antes mesmo de ter nascido, ocupando o lugar de seu irmão morto; ele queima como a chama que brilha em sinal do luto por seu irmão, destinada a nunca mais se apagar".

Pierre-Marie procura a análise por causa de suas tendências suicidas, pelo desejo de se matar. Leclaire entende tais fantasias como expressão do desejo e da necessidade de matar a "criança maravilhosa", expressão e representação do desejo materno, imagem na qual Pierre-Marie está aprisionado e cuja "morte" é absolutamente necessária para que ele possa viver.

Leclaire chama esta representação privilegiada de "representante narcísico primário" e acha ser esta uma das tarefas mais importantes do analista - o perpetrar a morte desta "criança": "A prática psicanalítica consiste em tornar manifesto o trabalho constante de uma força de morte, esta que consiste em matar a criança maravilhosa (ou aterrorizante) que, de geração em geração, testemunha acerca dos sonhos e desejos dos pais; só há vida a esse preço, pela morte da imagem primeira, estranha, na qual se inscreve o nascimento de cada um. Morte irrealizável, mas necessária, pois não há vida possível, vida de desejo, de criação, se cessarmos de matar a "criança maravilhosa" que renasce sempre". (Os grifos são de Leclaire).

No caso de Pierre-Marie e, supostamente, no de Van Gogh, o desejo materno é claro, transparente, até certo ponto consciente: o querer substituir um filho morto, o negar o luto, muito embora tal desejo seguramente deve ter prolongamentos inconscientes que explicariam a impossibilidade de elaborar o luto. Poderíamos imaginar, quais fantasias estariam depositadas naquele primeiro filho, das quais é impossível abdicar?

Mas isso que aparece com relativa nitidez nestes dois casos, não é a exceção e sim a regra, a maneira específica da estruturação própria do sujeito. Diz Leclaire: "Mesmo que não exista na história familiar um irmão morto, há sempre no desejo dos pais alguma perda à qual não puderam resignar-se - seja ela a de seus próprios sonhos infantis - , e sua progenitura será sempre e antes de tudo o suporte excelente e privilegiado daquilo a que eles tiveram de renunciar".

Dizendo de outro modo, as crianças nascem imersas dentro do campo dos desejos e fantasias inconscientes dos pais, são imediatamente deles depositárias e é justamente este desejo materno-paterno que constitui o núcleo mais inacessível de seus inconscientes. É, como já vimos, a isso que Leclaire chama de "representante narcísico primário". É somente "destruindo", via análise, estes representantes narcísicos primários, estes avatares do desejo dos pais, que o sujeito pode assumir seu próprio desejo, viver sua própria vida.

Não que isso seja fácil, pois o próprio sujeito se estrutura e organiza em torno destes representantes narcísicos primários, "significante dirigente que define o desejo da mãe", que vai constituir "uma representação inconsciente propriamente dita", cujo acesso é extremamente difícil, "tanto mais difícil (ou mesmo impossível) de ser apreendida e nomeada, uma vez que se encontra inscrita no inconsciente de um outro, simples, dupla ou múltipla, isto é, no desejo daqueles que conceberam ou viram nascer a criança", como diz Leclaire.

Mas é justamente esta tarefa "impossível" que a psicanálise dispõe-se a enfrentar - desentranhar o sujeito do desejo do Outro, embora este desejo do Outro seja o que mais intimamente o constitui, seja o seu cerne alienado, confuso e perdido.

Quem sabe, Van Gogh não conseguiu discriminar, em suas fantasias suicidas, o que havia de um legítimo desejo de viver, de desembaraçar-se da "criança maravilhosa" do desejo de sua mãe, de matar esta "criança" para efetivamente viver, e esta confusão custou-lhe a própria vida. Pierre-Marie teve mais sorte e a presença de um analista - Leclaire - a seu lado foi indubitavelmente imprescindível para o bom desfecho de sua travessia.

Bibliografia

1) Sweetman, David - "Van Gogh: His life and his art" - Crown Publishers

2) Leclaire, Serge - "Mata-se uma criança" - Um estudo sobre o narcisismo primário e a pulsão de morte - Zahar Editores - Rio - 1977

voltar a edição do mês

Polbr

mail2.gif

Giovanni Torello

Data da última modificação:08/09/99