EMILY

Rubem Alves

Vocês devem se lembrar de uma carta que transcrevi numa crônica, em setembro do ano passado. Era de uma jovem de 18 anos. Vou transcrevê-la de novo, para benefício da memória. Depois de um parágrafo introdutório ela escreveu: "Nasci normal... Mas a partir dos 12 anos começou a se desenvolver em mim uma doença hereditária, chama-se miopatia, distrofia muscular (D.M.C.). Essa doença aos poucos, progressivamente, vai atrofiando os nervos das pernas e dos braços e, por causa dessa doença minha coluna foi afetada, hoje eu mal consigo me locomover. Os médicos disseram que essa doença não tem cura. Cada dia que passa me sinto mais fraca e não vejo saída. Sou tão capaz mentalmente, mas meu corpo não me acompanha. (...) Eu não vejo mais razão para continuar nesse mundo. E eu tomei a decisão de me suicidar, já tinha tudo planejado, mas o seu livro me fez refletir e fui adiando..."

Pensei que uma coisa boa para ela seria ter um computador pelo qual ela pudesse se ligar à Internet e, através dela, estabelecer relações com muitas pessoas, inclusive aquelas que sofressem da mesma doença. Fiz um apelo por contribuições – pensei, inclusive, que haveria empresas trocando seus computadores velhos por computadores novos. Algumas pessoas responderam, mas o dinheiro não deu. E a moça ficou sem Internet. Ficamos amigos, trocamos correspondência, e hoje recebi dela a carta que transcrevo:

"Querido Senhor Rubem: Queria estar melhor ao escrever esta carta mas estou muito angustiada, não sei mais o que fazer pois não agüento mais ficar 24 horas por dia, 7 dias por semana sem fazer nada. Quando terminei o 2º grau, eu adorei, pois poderia fazer o que mais gosto por mais tempo: ler. Só que não conseguimos viver só de leitura e música (minha outra grande paixão), sinto falta de algo, de seguir uma rotina, na verdade acho que sinto falta de ter uma responsabilidade, de me sentir útil. Na verdade, sempre senti esse vazio, mas estava quase esquecido, de repente, me vejo agoniada, sem nada para fazer, sinceramente não sei o que pensar, o que fazer, se é que posso fazer alguma coisa. Me ajude, senhor Rubem, o que o senhor acha que devo fazer? É nessa hora que me pergunto se vale a pena viver assim. Me sinto presa dentro de uma bolha sem poder fazer nada, só olhar para esse mundo maravilhoso e me lamentar por "não fazer parte dele", por não poder usufruí-lo como a maioria das pessoas podem. Será que o meu lugar é aqui? Não me conformo como as pessoas desvalorizam a vida, como elas passam por momentos felizes sem se darem conta. Há uns dias atrás li um poema que parece ter sido feito sob medida para mim, pena que não tinha o nome do autor: ...Onde estou é tão difícil de encontrar./Onde estou as portas estão fechadas/ para ninguém entrar./Preciso que alguém me dê a mão/para que eu possa sair./Preciso que alguém compreenda os motivos pelos quais estou aqui./Preciso de alguém que me mostre o que fazer.../Quero viver!Quero dizer que nem sempre fui assim./Quero dizer que não posso mais ficar/ trancada dentro de mim... – Bem, apesar de tudo, estou aliviada pois sei que posso contar com o senhor, mesmo sem vê-lo..."

Eu já havia enviado minha próxima crônica para o jornal, quando essa carta me chegou. Resolvi adiar a crônica para o domingo próximo porque a carta da... – não sei se ela gostaria que eu citasse o seu nome – vou chamá-la de "Emily" - Emily é mais urgente. Não sei que resposta lhe dar. Sei, entretanto, que seria importante para ela sair da sua bolha, ter contato com o mundo, conhecer outras pessoas, fazer amigos virtuais, compartilhar sua condição, trocar experiências. Volto, então, à idéia original de conseguir um computador para a Emily. São duas as possibilidades. A primeira delas tem a ver com empresas que estejam eventualmente trocando seus computadores usados por computadores novos. Seria bonito se alguma delas pudesse fazer uma doação. A segunda delas tem a ver comigo e com vocês. Sei que são muitos os que me lêem. Se cada um se dispuser a fazer uma contribuição, poderemos ajuntar o dinheiro necessário para comprar o computador. A gente gasta tanto dinheiro em cinema, jantares, CDs, chopes, loções, coisinhas que se compram na feira de artesanato – tudo muito bom, muito justo, parte da vida normal de qualquer pessoa. Mas faria bem para a alma se a gente se dispusesse a dar um dinheiro para comprar o computador da Emily. Se você tem amigos e e-mail, peço compartilhar com eles esse pedido. As contribuições poderão ser enviadas para o meu endereço, rua Frei Antônio de Pádua 1521 ( Guanabara), CEP 13073-330 Campinas, telefone 2-416504.

Nota: Escolhi o nome de "Emily" para a nossa amiga de 18 anos porque ela me faz lembrar Emily Dickinson (1830-86), poeta norte-americana que nunca saiu de casa. Transcrevo um dos seus poemas com um pedido de perdão por não ter sido capaz de preservar as rimas: "Alguns guardam o Domingo indo à Igreja –/Eu o guardo ficando em casa –/Tendo um Sabiá como cantor –/E um Pomar por Santuário./–Alguns guardam o Domingo em vestes brancas – / Mas eu só uso minhas Asas –/E ao invés do repicar dos sinos na Igreja –/nosso pássaro canta no quintal./– É Deus que está pregando, pregador admirável –/E o seu sermão é sempre curto./ Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final –/eu estou indo para lá o tempo todo."

‘É nessa hora que me pergunto se vale a pena viver assim’

(Emily)

‘Não me conformo como as pessoas desvalorizam a vida (...), passam por momentos felizes sem se darem conta’

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Giovanni Torello

Data da última modificação:10/03/2000